terça-feira, 26 de agosto de 2008

Idéias - José Arbex Jr

O novo está aqui, na América Latina

José Arbex Jr. – Como explicar o ataque da Colômbia ao Equador?
Temos ai um momento crucial de um processo que já vem se desenrolando desde a eleição do presidente Chávez, reforçado pela eleição, no Equador, do presidente Correa: uma série de governos tende para uma posição de maior independência em relação aos Estados Unidos. De outro lado, o governo colombiano funciona como a ponta de lança política dos Estados Unidos na América do Sul. Mais cedo ou mais tarde, essa situação chegaria a um ponto critico. É uma situação que condensa conflitos internos às sociedades sul-americanas, conflitos de governos sul-americanos com o imperialismo estadunidense, e condensa também conflitos em uma escala mais ampla, que passa pelo jogo estratégico envolvendo a questão do petróleo e a presença dos Estados Unidos no Oriente Médio. Além disso, há também o antigo fato de que uma guerra pode ser muito útil para um governo desgastado como o de Uribe. Ela pode ser um fator de coesão, um estímulo ao nacionalismo, principalmente quando se associa à pretensa legitimidade da luta contra o narcotráfico.

Explique um pouco melhor o vínculo entre América do Sul e Oriente Médio.
Na medida em que os Estados Unidos têm uma retaguarda tranqüila na América do Sul, principalmente em relação à questão energética, eles podem se concentrar na tentativa de resolver a tremenda encalacrada em que se meteram no Iraque. Se o golpe de 2002 contra Chávez tivesse dado certo, a Casa Branca teria hoje uma retaguarda tranqüila. O problema é que eles estão com a agenda lotada no Oriente Médio e têm uma pedra no sapato, que é o governo da Venezuela.

Como você caracteriza o governo Chávez e o “socialismo do século 21”?
O governo Chávez não é socialista. Durante algum tempo, Chávez deixou muito claro que o socialismo não estava em sua agenda. Ele tentava mostrar que era possível uma alternativa ao neo-liberalismo. De um tempo pra cá, ele começou a falar em socialismo, e ai se cunhou a expressão socialismo do século21. Acho que ela mais confunde do que ajuda a entender o que se passa. A América Latina é hoje um viveiro de grandes lutas sociais. Essas lutas têm um potencial anti-imperialista muito grande, ou, até antes disso, têm um potencial nacionalista muito grande, quando são apropriadas pelas massas populares, que é o que está ocorrendo. Mas, não são lutas que apontam diretamente para o socialismo. Chávez não tem um programa voltado para a expropriação dos meios de produção, para o seu controle pelos trabalhadores e para a instituição de um poder político organizado de modo que os trabalhadores venham a exercê-lo. O socialismo passa por questões que sequer são arranhadas por Chávez. Agora, é claro que nem toda revolução precisa ser socialista. Em tempos de um novo imperialismo como está se configurando desde o final do século 20, uma política de confronto com a principal potência imperialista, uma política voltada para o atendimento ou criação de direitos sociais, em um país onde grande parte da população jamais tinha visto um médico na vida, isso pode ser considerado uma revolução de caráter nacional e democrático, mas ainda não socialista.

A esquerda acusa Chávez de desenvolver um discurso que conduz a uma utopia reacionária: a suposta possibilidade de humanizar o capitalismo. Você acha que Chávez está levando a Venezuela a um desastre?
Ao contrário, acho que ele conduz a luta que até agora considerou ser possível. Posso ter críticas a essa luta, mas não é porque não coincidem com as minhas aspirações que eu vou dizer que é um desastre. O Chávez tem uma imensa criatividade política, capacidade de liderança e ousadia, mas é alguém saído do interior da burocracia de Estado venezuelano, do ramo militar da burocracia. Querer que ele faça a revolução no meu lugar, eu que sou metido a comunista, a socialista, exigir que alguém com o perfil social do Chávez faça por mim o que eu gostaria de fazer e não tenho força, capacidade organizativa, inserção para fazer, eu considero um momento de infelicidade da esquerda. Grande parte da esquerda ainda não percebeu a dimensão do chavismo, em um quadro tremendamente desfavorável das lutas anti-imperialistas no mundo todo.

Você costuma dizer que o neoliberalismo não acabou e que está dando certo no Brasil. O que significa isso?
Basta a gente olhar para São Paulo: o congestionamento do tráfego é permanente, mas não é a chuva que o provoca, e sim o grande aumento da frota. Nunca se vendeu tanto carro, como em 2007, no Brasil. O lucro do Bradesco causa inveja aos banqueiros suíços, e o mesmo vale para a Vale do Rio Doce, que conta com a participação do Bradesco. O setor industrial ligado ao grande capital vai bem, o setor bancário vai bem, o setor voltado para especulação de capital fictício idem, e ao mesmo tempo o governo tem amplo apoio. O prestigio do governo Lula chegou ao auge no começo do ano, e é um prestigio maior ainda junto às classes populares. É tudo o que a burguesia quer: um governo que deixa banqueiro morrendo de rir e deixa grande parte da população satisfeita com as políticas sociais. Antes, o mercado tinha medo do Lula, agora o mercado tem medo que o Lula se vá.

Não é estranho isso tudo estar acontecendo no Brasil, bem no meio de uma crise imensa na sede do capitalismo?
A crise da economia estadunidense já se manifesta há bastante tempo, a diferença é que agora ela se escancarou, por conta não só da dinâmica econômica dos Estados Unidos e da ascensão de outras economias, como no caso da chinesa, mas também pela questão política: o gasto público estadunidense, seja com vistas a manter o poder aquisitivo de parte da sociedade, seja com vistas a financiar aventuras militares no exterior, é um gasto que torna os Estados Unidos um país em frangalhos. Eles estão em declínio econômico e político e a única saída, do ponto de vista da direita neoconservadora, é recorrer à violência para reverter o declínio enquanto há tempo, se é que há. É mais do que natural que empresas que estão em má situação por lá tentem obter lucratividade por diversos meios, inclusive políticos, em outros países. A GM vai bem no Brasil, eles estão tecnicamente falidos nos Estados Unidos, a Ford também, a Toyota já ultrapassou a ambas dentro do território econômico dos Estados Unidos. Elas se aventuram de várias maneiras, inclusive com o apoio do estado estadunidense, em vários lugares do mundo. O deslanche do capitalismo brasileiro tem a ver, em grande parte, com a situação de crise da economia estadunidense, e com a tendência de uma estabilização, que eu não sei por quanto tempo dura, da União Européia também.

Mas você acredita que um capitalismo periférico, como o brasileiro, possa se beneficiar impunemente da crise nos países centrais? Não há o perigo de um período curto de progresso seguido de uma catástrofe?
Pode acontecer. Nós estamos, de fato, vivendo uma situação de curto prazo em todos os aspectos: político, econômico, no plano internacional e nacional. Sabemos que estamos em uma transição, mas não sabemos para onde, porque tudo isso depende de co-relação de forças que estão em andamento.

Então, temos que relativizar a afirmação de que o neoliberalismo vai bem no Brasil, porque na verdade é uma situação transitória...
Mas esse transitório vem desde o governo Collor, passou pelo Itamar, se aprofundou com FHC e se reciclou com o governo Lula. Já temos ai 18 anos de um período de neoliberalismo representado no Brasil como política econômica e como ideologia, assumido não só pelos dominantes, mas também por setores dos dominados.

A estabilidade só foi possível mediante a cooptação de parte da esquerda, em particular do PT e da CUT. E quando a eficácia da receita se esgotar, o que vai acontecer?
Ai vai depender da capacidade de organização das forças que se pretendem alternativas a isso. Mas não são apenas a CUT e o PT que sustentam a política e a ideologia neo-liberal no Brasil. Grande parte da disputa do PT com o PSDB, envolvendo mensalão, dossiês etc e tal, é uma disputa pelo mesmo ponto. O PT, com toda a sua peculiaridade, ainda tem base sindical, uma base de massa que o tucanato não tem, ao passo que o partido disputa hoje as fontes de financiamento e também a base eleitoral que eram do PSDB. Você tem dois litigantes que disputam o mesmo ponto, querem aquele mesmo lugar, a mesma inserção. Foi intolerável para o tucanato ver a facilidade com o que antigos pretendentes a revolucionários se saíram muito bem na disputa. Então eu diria que há um consenso neo-liberal muito mais amplo que envolve a CUT, as suas direções principais, envolve o PT, mas envolve também o tucanato e até grandes contingentes que não têm preocupações e dedicação partidária.

Como explicar que enquanto a América Latina está em ebulição, no Brasil há um quadro estável? Até que ponto você acha que isso pode continuar?
São processos diferentes, nós estamos vivendo um ciclo ainda marcado pelas lutas operárias do final dos anos 70. Como desfecho desse ciclo, tivemos a eleição e a reeleição de um operário para presidente da república. Isso ainda é resultado, uma marola daquela grande onda de lutas operárias que veio lá do final dos anos 70. Em outros países da América Latina, os processos foram distintos. No caso da Bolívia, do México e da Venezuela, você não tem um passado recente de lutas operárias massivas como aconteceu no Brasil, mas sim lutas, por um lado, muito mais antigas, e por outro lado, muito mais conectadas aos desafios típicos do século 21. Esse é o ponto em que Chávez talvez tenha razão em fazer menção ao século 21. Há muita coisa nova acontecendo, incluindo a presença indígena direta na política. Na Bolívia, por exemplo, o movimento indígena praticamente empurrou o Evo Morales. Isso tudo aponta pra uma nova composição das lutas proletárias, semi-proletárias, populares, e esse é o elemento novo, com a participação de povos originários que têm uma imensa capacidade de se comunicar internacionalmente. A expressão “bolivarianismo” aponta pra isso. Ela é meio ideológica, é imprecisa, mas aponta para a necessidade de uma luta que transcenda os limites dos estados nacionais, para uma luta anti-sistêmica. E nós vivemos isso: o movimento camponês ou neo-camponês no Brasil é internacionalista, em um país que tem fraquíssima tradição de internacionalismo. A Escola Nacional Florestan Fernandes acabou de realizar um curso latino-americano em que, durante quatro meses, o idioma que menos se falava era o português. Isso é inédito na história do Brasil.

A tua hipótese surpreende: o auge da modernidade industrial, realizada no Brasil, é atrasado em relação à manifestação do arcaico, que é a cultura indígena na América Latina.
É aquela coisa dos ciclos defasados que estão se encerrando, incluindo o ciclo da hegemonia estadunidense, que abre espaço para esse movimento aqui na América Latina. O encerramento de um ciclo não é algo imediato. Ao contrário. A queda do Muro de Berlim aconteceu em 1989, mas o Partido Comunista Italiano acabou de acabar agora. Nós estamos vendo ainda a Europa sofrer esse vazio que a esquerda não está sabendo preencher. No Brasil também acontece algo muito parecido. Os ciclos, ao se encerrarem, abrem caminho para novas lutas, mas não necessariamente elas vão surgir nos cenários onde as lutas ligadas no ciclo anterior foram mais contundentes. É o que a gente está vendo na América Latina em relação à Europa. Antes, a esquerda olhava para a Europa, hoje os europeus ficam olhando e torcendo para esse ou aquele movimento latino-americano. Já se decepcionaram até com o PT, jogaram muitas ilusões nele, como jogaram no movimento dos piqueteros na Argentina. Mas eles estão mais na torcida, porque é aqui que as lutas estão acontecendo.

E como fica o marxismo nessa brincadeira?
Fica numa situação também complexa, ao mesmo tempo fecunda e desconfortável. Fecunda, porque com a derrocada da União Soviética intensificou-se ou consumou-se um processo que já vinha de longo tempo, de crítica formulada pelos principais intelectuais marxistas ao regime soviético. A consumação desse processo deu aos intelectuais marxistas a liberdade de reflexão maior, e ao mesmo tempo a necessidade de ousar mais, tanto que no caso do Brasil eu acho que é a primeira vez que nós temos grandes, ou potencialmente grandes intelectuais marxistas militantes. Antes, ou o cara era militante e não era um grande intelectual, ou era um grande teórico mas não militava, no máximo tinha uma função marginal no partido. Um exemplo, Caio Prado Junior nunca foi exatamente um cara de decisões centrais dentro do PCB. Um exemplo oposto é o Jacob Gorender: inteligentíssimo sempre, a grande obra teórica dele é feita pós-militância. Agora não, agora você tem, em vários lugares, marxistas militantes e criativos teoricamente. A boa novidade é que o marxismo vai ter que ser recriado. Uma série de lutas do passado não adquirem mais sentido hoje, por exemplo trotskismo versus stalinismo. Agora, qual é o desespero do marxismo hoje? É exatamente a falta de base social. Não adianta ter boas categorias muito bem formuladas se aquilo não ganha massa, e o que nós temos hoje é exatamente essa dificuldade do marxismo ser apropriado pelas massas. Hoje, você tem ativistas sociais que articulam mitos ancestrais, mitos indígenas com formulações marxistas, ou seja, nós estamos em uma época de sincretismo, de ecletismos que são uma expressão desse vazio deixado pelo marxismo anterior, ligado a forças sociais que já não estão tão ativas, estão meio adormecidas e até em fase de reestruturação. Então o marxismo teoricamente tem um potencial muito grande, mas ele só supera a crise pela qual ele se enveredou no século passado, na medida em que ele for apropriado por esses novos movimentos de massa.

O movimento negro brasileiro é um componente desse novo processo global?
Não sou negro, não me identifico como negro, mas acho que o movimento negro no Brasil tem um potencial muito grande, mas de realização ínfima, muito pequena. O neo-liberalismo atinge profundamente o movimento negro, acho lamentável isso. Acho que sem uma identidade negra, orgulhosa, altiva - e ai que está a chave -, coletiva, é difícil fazer qualquer luta de massa. O movimento negro carece no Brasil de uma capacidade, ou de uma disposição para uma ação coletiva mais contundente de caráter anti-sistêmica, ele é muito mais voltado para reivindicar alguns direitos no interior dos quais os indivíduos negros resolvam cada um em melhores condições a sua situação.

Você se considera pessimista?
Por algum motivo, na dinâmica do meu papo, eu acabei destacando forças mais negativas. É que eu não tive aqui a intenção de vender ilusões. Mas eu levo a sério aquilo que é mais difícil, mais desafiador e criativo, aquilo que motiva a minha atividade de cientista social: procurar detectar, descobrir as forças capazes de levar com sucesso lutas anti-sistêmicas. Nós estamos na encruzilhada entre socialismo e barbárie. Essa encruzilhada nunca foi tão clara como na nossa época. É fundamental, por isso, que a gente saiba bastante acerca dos nossos inimigos e dos nossos obstáculos, mas é mais fundamental ainda saber como superá-los.

sábado, 23 de agosto de 2008

A Groenlândia e as mudanças climáticas

A Groenlândia é um dos melhores locais para se observar os efeitos da mudança climática. Como a maior ilha do mundo tem apenas 55 mil habitantes e nenhuma indústria, as condições da sua enorme cobertura de gelo - bem como a sua temperatura, precipitação e ventos - são influenciadas pelas correntes atmosféricas e oceânicas globais que ali convergem. O que quer que ocorra na China ou no Brasil, de alguma forma, é sentido nesta imensa ilha gelada. E como os groenlandeses vivem próximos à natureza, eles são barômetros vivos da mudança climática.

Friedmann afirma que em sua viagem aprendeu um novo idioma na Goenlândia: a "língua do clima".

Segundo ele, é fácil aprendê-la. Ela só tem três frases. A primeira é: "Há apenas alguns anos". Há apenas alguns anos era possível viajar no inverno, em um trenó puxado por cães, da Groenlândia à Ilha de Disko, passando sobre uma banquisa de gelo de 64 quilômetros de extensão. Mas, nos últimos anos, as temperaturas mais elevadas do inverno na Groenlândia derreteram essa ponte de gelo. Agora a Ilha de Disko está isolada. Aposentem o trenó.

Entre 1979 e 2007 houve um aumento de 30% do derretimento da camada de gelo da Groenlândia, e, em 2007, estima-se que este derretimento foi 10% mais intenso do que em qualquer ano anterior. Atualmente a Groenlândia está perdendo cerca de 200 quilômetros cúbicos de gelo por ano - com o derretimento e queda no mar do gelo situado nas bordas das geleiras -, o que excede em muito o volume de todo o gelo existente nos Alpes. Tudo está acontecendo bem antes do que se esperava.

A segunda frase é: "Nunca vi isto antes...". Em dezembro e janeiro choveu em Ilulissat. Este lugar fica bem ao norte do Círculo Polar Ártico! Não devia chover aqui no inverno, mas é isso o que vem acontecendo atualmente.

A terceira frase é: "Bem, geralmente... mas agora não sei mais". Os padrões climáticos tradicionais que as pessoas idosas da Groenlândia conheceram durante toda a vida mudaram tão rapidamente em certos locais. A longa experiência acumulada por elas já não é tão importante como antes. O rio que sempre correu naquele local agora está seco. A geleira que sempre cobriu aquela montanha desapareceu. A rena que sempre esteve lá quando a temporada de caça começava, em 1º de agosto, não apareceu.

Não é de se surpreender que agora todos aqui falem a língua do clima. Ao que tudo indica, as novas gerações serão “alfabetizadas” nesse novo idioma.
José Arbex

domingo, 17 de agosto de 2008

ENEM

Excelente para ficar cada vez mais por dentro do ENEM.

http://educacao.uol.com.br/enem

sábado, 16 de agosto de 2008

UNICAMP

O link abaixo traz as provas comentadas e as respostas acima e abaixo da média.

http://www.comvest.unicamp.br/vest_anteriores/provas_comentadas.html

É só entrar e mãos a obra.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

A África na escola.

Mas eles não gostaram, pois o personagem de Milton Gonçalves é um político corrupto. O deputado estadual José Candido (PT-SP) acusou o ator de prestar um “desserviço” ao movimento negro, criando “uma má impressão do negro à população”. Se entendi direito, o corpo negro é imune à corrupção.
Numa entrevista a este jornal, o ator não se limitou a responder a Candido, mas ofereceu uma aula singela. Ele disse que “algumas coisas mudaram na minha cabeça” depois de visitar a África: “Descobri que não sou um negro brasileiro, mas um brasileiro negro. Descobri que não sou africano, sou brasileiro.” São descobertas incompreensíveis para os que nos governam.
Uma lei de 2003 tornou obrigatório o ensino de “história e cultura afro-brasileira e africana” nas escolas brasileiras. A determinação não se circunscreve a indicar uma temática mas pretende orientar uma abordagem. Num parecer de março de 2004, destinado a esclarecer o espírito da lei, o Conselho Nacional de Educação afirma que o “fortalecimento de identidades e de direitos deve conduzir para o esclarecimento a respeito de equívocos quanto a uma identidade humana universal”. Segundo a palavra impressa do Estado brasileiro, a humanidade se divide em raças e as crianças devem aprender que uma ponte racial liga os negros do Brasil a uma pátria ancestral africana.
“Não sou um negro brasileiro, mas um brasileiro negro”. O ator está dizendo que a sua identidade principal emana da esfera política e tem como referência o conceito de cidadania, não o de raça. Os brasileiros, de todos os tons de pele, formam uma nação única, alicerçada sobre o contrato da igualdade perante a lei. A identidade brasileira constitui nossa identidade pública. No espaço privado, segundo opções pessoais, podemos nos definir como negros, brancos, mestiços, gays ou corintianos.
“Não sou africano, sou brasileiro”. A segunda descoberta esclarece a primeira – e esclarece muito mais. A África está no Brasil, de mil maneiras, e há inúmeros bons motivos para se falar mais da África na escola. O melhor foi explicado pela antropóloga Yvonne Maggie, no seu O medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil (RJ, Arquivo Nacional, 1992). Analisando a perseguição judicial contra as religiões mediúnicas, Maggie comprova a hipótese de que a crença na magia afeta pessoas de todas as cores e classes sociais no Brasil. Isso forma uma ponte essencial entre nós e a África. Mas essa ponte também conecta todos os brasileiros e faz de nossa mestiçagem algo mais profundo que o intercâmbio de genes. Mesmo assim, não somos africanos.
O Brasil é o Novo Mundo; a África é o Velho Mundo. No Brasil, o que vale não é a ancestralidade, mas a posição e a renda. Na esperança de inventar uma Europa tropical, o Império do Brasil distribuiu títulos nobiliárquicos, mas tais signos da diferença circulavam como mercadorias especiais no bazar dos privilégios simbólicos. Na África, como em tantos lugares da Europa, a linhagem de sangue define posições e regula relações. Atrás de uma fachada política de repúblicas, as sociedades africanas continuam a girar à volta de constelações de reis tradicionais e líderes ancestrais. Sob certos sentidos, não é o brasileiro, mas o europeu que está mais em casa na África.
“Não sou africano”. Ninguém é africano. África, no singular, é uma declaração de ignorância. As crianças dizem que algum lugar está na África, como se o continente fosse um país. Os europeus inventaram uma África singular para designar a “terra dos selvagens” e, mais tarde, a “terra dos negros”. Os intelectuais negros dos EUA e do Caribe que formularam a doutrina do pan-africanismo beberam no conceito racial europeu para desenhar no céu dos seus sonhos a África singular. No início do século 21, o Brasil oficial ainda não aprendeu que existem Áfricas incontáveis e pretende usar o nome do continente como metáfora para ensinar uma fábula racial às crianças.
O ministro da Educação Fernando Haddad prometeu apresentar em agosto um plano nacional para a implementação da lei de 2003. Leonor Franco de Araújo, coordenadora-geral de Diversidade do MEC, identificou dificuldades na aplicação da lei e as atribuiu ao fato de que os professores “não recebem essa formação durante a graduação”. Deixem-me contribuir com o esforço de Haddad e Leonor na formação dos professores oferecendo-lhes duas pequenas citações. A primeira: “As raças, como as famílias, são organismos e ordenações de Deus; e o sentimento racial, tal como o sentimento familiar, é de origem divina. A extinção do sentimento racial é tão possível quanto a extinção do sentimento familiar. Na verdade, a raça é uma família.” A segunda: “A história do mundo é a história não de indivíduos, mas de grupos, não de nações, mas de raças”. Os autores, pela ordem, são Alexander Crummell (1819-1898) e W. E. B. Du Bois (1868-1963), americanos, negros, pais fundadores do pan-africanismo.
O diagnóstico de Leonor está correto, mas de um modo que ela não suspeita. Há muito a fazer no campo da formação de professores. Contudo, no caso, as dificuldades de aplicação da lei de ensino racial não derivam da ignorância teórica dos mestres mas do seu saber prático, vivido e experimentado. Como Milton Gonçalves, os professores sentem-se brasileiros e aprenderam, bem antes da graduação, que existe “uma identidade humana universal”. Eles têm dificuldades em narrar a história segundo o paradigma racial. Eles resistem à diretiva de dividir a humanidade e seus alunos em raças. O MEC terá que se esforçar mais.

Demétrio Magnoli