segunda-feira, 15 de novembro de 2010

G20, o espetáculo da soberania

Aquilo que o ministro Guido Mantega define como guerra cambial é a paisagem superficial da longa crise do sistema de Bretton Woods. O desequilíbrio entre os superávits chineses e os déficits americanos forma o relevo destacado nessa paisagem, mas não a esgota nem a explica. A crise de fundo tem uma dimensão econômica mas uma raiz geopolítica. No fim das contas, as engrenagens institucionais da ordem econômica global parecem emperradas, pela primeira vez desde o pós-guerra. O G20, palco da estreia de Dilma Rousseff na cena internacional, não é a ferramenta milagrosa de solução da crise. Antes, figura como uma expressão singular do impasse evidenciado desde a quebra do Lehman Brothers.
Na sua versão original, o edifício de Bretton Woods praticamente excluía a necessidade de interferência política no sistema monetário. O dólar refletia o ouro, que lhe servia de lastro nominal, e uma coleção de moedas orbitava em torno do dólar segundo um mecanismo de paridades quase fixas. As fundações do edifício estavam assentadas na rocha da escassez de dólares, num tempo em que os EUA eram os credores do mundo. O arranjo promoveu as três décadas gloriosas de crescimento acelerado das economias de mercado. Voluntariamente, para salvar o capitalismo, os EUA ajudaram a criar centros independentes de poder econômico, sacrificando no caminho a posição de hegemonia absoluta adquirida durante a guerra.
Quando a escassez de dólares desapareceu, premido pelo financiamento da Guerra do Vietnã, Richard Nixon levantou a âncora da paridade com o ouro. Bretton Woods 2 não emanou de uma conferência, mas de um gesto unilateral do gerente do sistema: a retomada da prerrogativa soberana de imprimir moeda. No novo ambiente de flutuação cambial, a interferência política dos principais atores tornou-se um imperativo. O G5 e o G7, seu sucessor, nasceram como respostas à necessidade de tecer consensos em torno da governança econômica global. Eles operaram como um clube seleto, que compartilhava uma visão de mundo similar e tomava decisões informais em reuniões fechadas, protegidas do assédio da imprensa.
Desde 1971, os EUA agem de olho nas suas prioridades nacionais, dividindo com o resto do sistema internacional o custo das políticas domésticas. A desvalorização de Nixon difundiu para o mundo as pressões inflacionárias geradas no interior da economia americana. Dez anos depois, a “revolução econômica” de Ronald Reagan provocou a elevação dos juros globais, o desvio da liquidez mundial na direção de Wall Street e uma forte apreciação do dólar. Poucos anos mais tarde, tornou-se inadiável uma brusca correção de rumo, com a depreciação do dólar frente ao marco e ao yen, algo que demandava a aquiescência da Alemanha e do Japão. Washington obteve o que desejava no Acordo do Plaza de 1985, uma prova indiscutível da eficácia política do clube das potências.
Há dois anos, os EUA buscam uma reedição do Acordo do Plaza, sob a forma de um pacto de limitação de superávits ao máximo de 4% dos PIBs nacionais, o que implicaria forte apreciação do renminbi chinês. A proposta faz sentido, mas não decola, pela conjunção de dois motivos. Um: a China não admite reproduzir a função desempenhada pelo Japão há um quarto de século. Dois: o G20 não é um G7 ampliado.
Os chineses temem repetir a trajetória do Japão depois do Plaza, quando o influxo de capitais coagulou-se em bolhas especulativas nos mercados de imóveis e ações, que explodiram na crise financeira de 1990 e redundaram numa estagnação de quase dez anos. O consenso interno em torno do renminbi depreciado estende-se do núcleo dirigente do Partido Comunista, que resiste a conferir direitos econômicos à população, até as empresas transnacionais estabelecidas no país, que funcionam como plataformas de exportações.
O G20, consolidado após a quebra do Lehman Brothers, reflete o declínio relativo dos EUA e a multiplicação dos centros de poder econômico gerados pela globalização. Ele não é um clube, mas um fórum. Seus integrantes, especialmente a China, não compartilham a visão de mundo que moldou o sistema de Bretton Woods. Suas reuniões, escancaradas ao escrutínio público, são teatros do espetáculo da soberania. Hoje, em Seul, chineses, alemães, brasileiros e sul-africanos erguerão suas vozes para acusar os EUA. Todos eles estarão de olhos postos nas manchetes dos telejornais e das publicações impressas.
A decisão do Federal Reserve de inundar o mercado com uma torrente de US$ 600 bilhões assinala um ponto de inflexão. Os EUA cansaram de esperar e resolveram mudar unilateralmente o cenário mundial. A China retrucou num tom incomum, anunciando que erguerá uma “muralha de fogo” contra o ingresso de capitais especulativos. A guerra cambial assume a configuração de um confronto político e ameaça converter o G20 em praça de combates. Em meio aos disparos, o governo brasileiro transforma a justificada indignação com a iniciativa americana em pretexto para circundar o debate sobre a conexão entre os gastos públicos, as taxas de juros e a apreciação do real.
Uma falência do G20 não serviria a nenhum dos atores de uma ordem econômica global que precisa da “mão visível” da política para conservar alguma estabilidade. Mas o espetáculo da soberania, por sua própria dinâmica, pode desandar em guerra cambial e comercial, arrastando o mundo pela ladeira da depressão. Hoje, só o FMI, que faz reuniões fechadas, propícias à separação entre a soberania e seu exercício espetacular, tem as condições políticas para exercer a mediação entre as potências do G20. Depois dos retumbantes fracassos dos anos 90, o FMI pode encontrar um novo papel útil nessa função de intermediação. Se isso acontecer, o Brasil de Dilma Rousseff reconhecerá na antiga instituição de Bretton Woods um parceiro insubstituível. Ironias da história.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Novas potências redefinem a geografia econômica mundial

O sistema internacional do século XXI tem se apresentado cada vez mais descentralizado e dotado de uma multiplicidade de pólos de decisão. Esse novo equilíbrio, sobre o plano histórico representa o fim de um longo ciclo de preponderância ocidental. O policentrismo que vem se afirmando nos últimos anos implica não somente numa distribuição internacional mais eqüitativa das riquezas, mas também tem sinalizado para importantes modificações no âmbito geopolítico.
Assim, instituições internacionais criadas após a Segunda Guerra Mundial como, por exemplo, as Nações Unidas (ONU), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o G-7, deverão necessariamente evoluir para refletir essas novas realidades. Dada a multiplicidade e a amplitude dos desafios mundiais, essas mutações exigem que se repense a questão da cooperação internacional.
Os prognósticos econômicos indicam que em 2020, o Produto Interno Bruto (PIB) de sete países emergentes, grupo formado por China, Índia, Brasil, Rússia, México, Indonésia e Turquia (E-7) será maior que o do G-7. Até 2030, cinco das 10 maiores economias serão países tidos hoje como emergentes.
Essas informações constam de recente relatório da prestigiosa organização PricewaterhouseCoopers (PwC) que ainda afirma que o E-7 e o G-7 terão pesos equivalentes um pouco antes de 2020. Há dez anos, o PIB dos sete países mais ricos do mundo era o dobro dos países que hoje são considerados emergentes. Depois da aparente arrefecimento da crise que atingiu especialmente o mundo desenvolvido em 2008/2009, neste ano a redução da distância do PIB entre o E-7 e o G-7 deverá ser de 35%.
Segundo ainda a PwC, daqui vinte anos os maiores PIBs do mundo serão, em ordem decrescente, China, Estados Unidos, Índia, Japão, Brasil, Rússia, Alemanha, México, França e Reino Unido.As mudanças que estão ocorrendo rapidamente no cenário econômico mundial, como não podiam deixar de ser têm ampla repercussões geopolíticas. Por exemplo, em 2009, o G-7 foi “engolido” pelo G-20 que cada vez mais se comporta como o principal fórum para as decisões da economia global.
Nas relações de poder no mundo atual podem ser identificados três planos. No de âmbito militar, desde a desintegração da União Soviética (1991), os Estados Unidos se cristalizaram como o maior poder mundial. Nenhum país do mundo tem a capacidade dos norte-americanos, em atuar em qualquer ponto do planeta onde seus interesses econômicos ou estratégicos estiverem sendo ameaçados. E isto, aparentemente, não deve mudar nas próximas décadas.
Num segundo plano, o das relações econômicas, o mundo é realmente cada vez mais policêntrico. Neste plano os Estados Unidos não conseguem seus objetivos sem barganhar com outros importantes protagonistas como a Europa, China e outros. Mas, isso não sinaliza uma rápida decadência norte-americana.
O país ainda se mantém na vanguarda dos avanços e inovações em áreas estratégicas como a ciência e tecnologia e seu peso na economia global ainda é enorme. Com apenas 5% da população do planeta, os Estados Unidos geraram ao longo de mais de um século entre 20 e 30% de toda produção mundial, mesmo em períodos marcados por guerras e depressões econômicas.
Por fim, no plano das relações internacionais, ninguém está efetivamente na liderança, já que a única forma de lidar com problemas como o terrorismo, tráfico de drogas, pandemias proliferação nuclear ou mudanças climáticas é por meio da cooperação entre governos. É nesse âmbito que residem as maiores ameaças do mundo atual. Para fazer frente a esses desafios nenhum país tem a capacidade de resolve-los de forma unilateral, mesmo com grande preponderância militar.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Censo 2010 deverá confirmar tendências demográficas conhecidas

Começou no último mês de agosto a coleta dos dados populacionais do 12º recenseamento demográfico a ser realizado pelo Brasil. Quando os dados mais gerais – população total e população por regiões e estados – forem divulgados, serão confirmadas e detalhadas algumas tendências demográficas já bastante conhecidas. Além do Censo, que é decenal, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) produz anualmente a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), uma fonte de importantes informações no período intercensitário.
Uma primeira e óbvia constatação do censo será a continuidade do crescimento da população do país, o que se verifica desde o primeiro recenseamento nacional, ainda no Império, em 1872. As estimativas evidenciam que o número de brasileiros, em 2010, alcança a marca aproximada de 195 milhões – cerca de 25 milhões mais que a população recenseada em 2000. A população absoluta é quase 20 vezes maior que aquela registrada pelo censo pioneiro. Ao longo do século XX, o contingente demográfico do Brasil foi acrescido em mais de 150 milhões de pessoas. Dois terços desse total nasceu nos últimos 50 anos.
Se compararmos o aumento numérico da população brasileira nesta primeira década do século XXI com a população total dos quase 200 países do mundo atual, constataremos que a cifra de 25 milhões é superior ao efetivo populacional de pelo menos 150 nações. Nas Américas, apenas seis países – Estados Unidos, México, Canadá, Argentina, Colômbia e Peru – apresentam um população total superior a 25 milhões de habitantes.
O Brasil é atualmente o quinto país mais populoso do mundo, superado apenas pela China (1,3 bilhão), Índia (1,2 bilhão), Estados Unidos (300 milhões) e Indonésia (240 milhões). Em função da dinâmica demográfica específica de cada país, nas próximas décadas ocorrerão mudanças nesse ranking. Assim, por volta de 2035, a Índia ultrapassará a China, tornando-se o país mais populoso do mundo. No horizonte de 2050, o Brasil será ultrapassado por Paquistão, Bangladesh e Nigéria.
Não faz muito tempo que se acreditava que o Brasil atingiria a cifra de 200 milhões de habitantes antes do ano 2000. Isso, contudo, só ocorrerá um pouco antes de 2015. No início da década de 1960 ainda não se vislumbravam os efeitos da transição demográfica que acompanhou o processo de modernização econômica e social do país. Levando-se em consideração que, atualmente, o saldo migratório é quase insignificante e que será mantida a tendência à redução do crescimento vegetativo, pode-se prever o início da redução da população total brasileira para algum ponto entre 2040 e 2045.
O cenário de distribuição da população pelas regiões brasileiras também não trará surpresas. As cinco grandes regiões do país conhecerão incremento demográfico e, em todas elas, o ritmo do crescimento vegetativo continuará apresentando redução significativa. A posição de cada uma das regiões no ranking populacional do país seguirá inalterada em relação aos censos anteriores. O Sudeste, com pouco mais 42% da população total, continuará sendo a região mais populosa, seguida do Nordeste, Sul, Norte e Centro-Oeste. As duas últimas regiões, onde encontram-se importantes fronteiras de recursos, continuam atraindo migrantes de outras regiões do país. Por conta disso, são elas que apresentam aumento sistemático de participação na população total do país.
Os estados de maior população permanecerão sendo São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, Bahia, Rio Grande do Sul e Paraná – que, juntos, abrigam cerca de 60% dos habitantes do país. Há uma hipótese curiosa, a ser testada. No horizonte de 2020, o Sudeste, especialmente o Rio de Janeiro, talvez conheça alguma ampliação marginal na participação na população total do país, em decorrência tanto de eventos como a Copa do Mundo (2014) e a Olimpíada (2016) quanto dos expressivos investimentos previstos para a exploração do pré-sal.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Nigéria o novo gigante

A Nigéria é o gigante demográfico da África, com uma população que se encaminha rapidamente aos 150 milhões de habitantes. Segundo estimativas, por volta de 2025 o país terá um efetivo populacional de mais ou menos 200 milhões que, em 2050, poderá chegar aos 280 milhões deixando para traz o Brasil em termos de população absoluta.
No contexto econômico africano e mundial a Nigéria se destaca por estar entre os maiores produtores de petróleo - e no âmbito da política regional lidera a Comunidade dos Estados da África Ocidental, uma organização empenhada em mediar e solucionar os conflitos e tensões que com freqüência ocorrem nas regiões do entorno do Golfo da Guiné. Apesar de sua indiscutível importância, o país enfrenta graves tensões internas desde sua independência, em 1960.
Criado artificialmente pelos britânicos, o Estado nigeriano possui duas macro regiões distintas e tradicionalmente rivais: o norte, majoritariamente muçulmano e politicamente hegemônico e o sul, predominantemente cristão e animista e economicamente mais próspero.
Três grupos etno-culturais são majoritários no país e se distinguem pela combinação de aspectos religiosos, identidade lingüística e pelo enraizamento territorial. Ao norte estão os haussa-fulanis (cerca de 32% da população total), adeptos do islamismo. O sudoeste é a área por excelência dos iorubas (cerca de 21%). Embora o animismo (religião ligada à crenças ancestrais) seja dominante nesta região, o islamismo teve forte crescimento nas últimas décadas. Curiosamente, os iorubas muçulmanos costumam se identificar primeiramente pela etnia, para depois indicar sua "preferência" religiosa. Por fim, o terceiro grande grupo, o dos ibos (cerca de 18%) é formado essencialmente por elementos cristãos e têm como área-núcleo o sudeste do país.
O restante da população - cerca de 30% - é formado por mais de 200 etnias, várias delas com apenas alguns milhares de indivíduos. Esses grupos têm um papel importante no país, ocupando postos chave nas Forças Armadas e nos estados do sudeste, onde ficam as principais jazidas de petróleo e gás natural. Por meio de complexas alianças, eles fazem frente à hegemonia imposta pelas três etnias majoritárias e concentram seus esforços em impedir a implosão da federação nigeriana.
Não por acaso, foram essas etnias as principais beneficiadas pelo processo de fragmentação político-administrativa do país. Isso pode ser constatado pelo fato da Nigéria ter passado de três estados federados em 1960, para mais de 30 na atualidade. A mudança antiga capital, Lagos (localizada em território ioruba, no sudoeste), para Abuja (situada no centro do país, portanto fora das áreas-núcleo das três etnias majoritárias) indica a importância dada pelo governo central à essas minorias. Isso, contudo, não tem impedido que conflitos esporádicos ocorram entre as várias etnias minoritárias, especialmente na porção sul do país.
Deve-se ressaltar também que mesmo no interior das áreas-núcleo das três grandes etnias a composição da população não é homogênea. Cada uma das grandes zonas (norte, sudoeste e sudeste) possui grupos que são étnica ou religiosamente minoritários. Assim, no norte haussa-fulani islamizado, são encontrados inúmeros bolsões de população que seguem o cristianismo. No conjunto ioruba aquele que se apresenta como mais homogêneo do ponto de vista étnico, há intensas rivalidades regionais cujas raízes estão ligadas à época da escravatura quando grupos étnicos do litoral capturavam escravos do interior para vende-los aos europeus. Na Nigéria contemporânea coabitam descendentes de escravagistas e vítimas desse processo. Este é um outro fator que contribui para explicar alguns dos rancores e antagonismos atuais.
Um outro aspecto que deve ser ressaltado é que foram os ibos, entre as três grandes etnias, aqueles que mais migraram de sua área-núcleo para outras regiões, especialmente para o norte do país. Nos últimos 50 anos, a história da porção setentrional da Nigéria tem sido marcada por tensões e confrontos entre a etnia dominante e os ibos.
Esse grupo é visado tanto por ser uma etnia exógena, como também por ser uma minoria cristã implantada no interior de uma área majoritariamente muçulmana. Durante a Guerra de Biafra (1967-1970), conflito no qual os ibos pretenderam se separar do resto do país, houve um êxodo maciço deles do norte em direção à sua área-núcleo. Terminado o conflito, ocorreram novos fluxos de migrantes ibos para outras regiões do país. Os que se estabeleceram no norte foram, em diferentes momentos, vítimas de novas perseguições.
Já na região sudeste, apesar da predominância demográfica dos ibos, a estratégia de ampliar sua influência sobre outros grupos é contestada por um grande número de minorias que inclusive se negaram a engajar do lado dos separatistas ibos durante a Guerra de Biafra.
Em resumo, o mapa religioso da Nigéria compreende três grandes blocos. O islamismo, majoritário entre as populações haussa-fulani do norte, vem crescendo junto aos iorubas do sudoeste. Os cristãos, majoritários no seio das etnias sulistas, especialmente junto aos ibos e das pequenas etnias vizinhas, estão presentes também em bolsões minoritários no norte do país. Por fim, os cultos animistas, são expressivos junto às populações do sul, especialmente entre os iorubas.
Como esses três grandes conjuntos religiosos não coincidem exatamente com a distribuição étnica, surgem situações complexas. Nas últimas décadas, o islamismo teve forte crescimento no sudoeste junto à etnia ioruba, modificando a imagem do islamismo nigeriano, até então marcadamente haussa-fulani.
A região norte tem sido, nas últimas duas décadas, palco constante de confrontações em função, de um lado, do crescimento de movimentos islâmicos radicais, estimulados por entidades religiosas financiadas por países do Oriente Médio (especialmente a Arábia Saudita) e, de outro, por uma onda de "nova evangelização" das etnias minoritárias não-muçulmanas encorajada por seitas protestantes. Nesse contexto, qualquer pequeno incidente pode resultar em explosões de violência que só ajudam a perpetuar as tensões.
O crescimento do islamismo mais radical tem se verificado sobre os fracassos dos modelos ocidentais que foram tentados pelos diferentes governos que o país já teve. Recusando o processo de globalização e condenando a excessiva ocidentalização das elites corruptas, esses movimentos têm recrutado simpatizantes especialmente entre o grande número de jovens sem perspectiva que se amontoam nas periferias e favelas das grandes cidades do norte do país. Eles se constituem em massa de manobra facilmente manipulável.
Dada a complexidade dos problemas internos do país e das tensões latentes acumuladas é quase um milagre que a Nigéria não tenha se desintegrado territorialmente.

Nigéria: radiografia de um país emergente da África

A Nigéria é o gigante demográfico da África, com uma população que se encaminha rapidamente aos 150 milhões de habitantes. Segundo estimativas, por volta de 2025 o país terá um efetivo populacional de mais ou menos 200 milhões que, em 2050, poderá chegar aos 280 milhões deixando para traz o Brasil em termos de população absoluta.
No contexto econômico africano e mundial a Nigéria se destaca por estar entre os maiores produtores de petróleo - e no âmbito da política regional lidera a Comunidade dos Estados da África Ocidental, uma organização empenhada em mediar e solucionar os conflitos e tensões que com freqüência ocorrem nas regiões do entorno do Golfo da Guiné. Apesar de sua indiscutível importância, o país enfrenta graves tensões internas desde sua independência, em 1960.
Criado artificialmente pelos britânicos, o Estado nigeriano possui duas macro regiões distintas e tradicionalmente rivais: o norte, majoritariamente muçulmano e politicamente hegemônico e o sul, predominantemente cristão e animista e economicamente mais próspero.
Três grupos etno-culturais são majoritários no país e se distinguem pela combinação de aspectos religiosos, identidade lingüística e pelo enraizamento territorial. Ao norte estão os haussa-fulanis (cerca de 32% da população total), adeptos do islamismo. O sudoeste é a área por excelência dos iorubas (cerca de 21%). Embora o animismo (religião ligada à crenças ancestrais) seja dominante nesta região, o islamismo teve forte crescimento nas últimas décadas. Curiosamente, os iorubas muçulmanos costumam se identificar primeiramente pela etnia, para depois indicar sua "preferência" religiosa. Por fim, o terceiro grande grupo, o dos ibos (cerca de 18%) é formado essencialmente por elementos cristãos e têm como área-núcleo o sudeste do país.
O restante da população - cerca de 30% - é formado por mais de 200 etnias, várias delas com apenas alguns milhares de indivíduos. Esses grupos têm um papel importante no país, ocupando postos chave nas Forças Armadas e nos estados do sudeste, onde ficam as principais jazidas de petróleo e gás natural. Por meio de complexas alianças, eles fazem frente à hegemonia imposta pelas três etnias majoritárias e concentram seus esforços em impedir a implosão da federação nigeriana.
Não por acaso, foram essas etnias as principais beneficiadas pelo processo de fragmentação político-administrativa do país. Isso pode ser constatado pelo fato da Nigéria ter passado de três estados federados em 1960, para mais de 30 na atualidade. A mudança antiga capital, Lagos (localizada em território ioruba, no sudoeste), para Abuja (situada no centro do país, portanto fora das áreas-núcleo das três etnias majoritárias) indica a importância dada pelo governo central à essas minorias. Isso, contudo, não tem impedido que conflitos esporádicos ocorram entre as várias etnias minoritárias, especialmente na porção sul do país.
Deve-se ressaltar também que mesmo no interior das áreas-núcleo das três grandes etnias a composição da população não é homogênea. Cada uma das grandes zonas (norte, sudoeste e sudeste) possui grupos que são étnica ou religiosamente minoritários. Assim, no norte haussa-fulani islamizado, são encontrados inúmeros bolsões de população que seguem o cristianismo. No conjunto ioruba aquele que se apresenta como mais homogêneo do ponto de vista étnico, há intensas rivalidades regionais cujas raízes estão ligadas à época da escravatura quando grupos étnicos do litoral capturavam escravos do interior para vende-los aos europeus. Na Nigéria contemporânea coabitam descendentes de escravagistas e vítimas desse processo. Este é um outro fator que contribui para explicar alguns dos rancores e antagonismos atuais.
Um outro aspecto que deve ser ressaltado é que foram os ibos, entre as três grandes etnias, aqueles que mais migraram de sua área-núcleo para outras regiões, especialmente para o norte do país. Nos últimos 50 anos, a história da porção setentrional da Nigéria tem sido marcada por tensões e confrontos entre a etnia dominante e os ibos.
Esse grupo é visado tanto por ser uma etnia exógena, como também por ser uma minoria cristã implantada no interior de uma área majoritariamente muçulmana. Durante a Guerra de Biafra (1967-1970), conflito no qual os ibos pretenderam se separar do resto do país, houve um êxodo maciço deles do norte em direção à sua área-núcleo. Terminado o conflito, ocorreram novos fluxos de migrantes ibos para outras regiões do país. Os que se estabeleceram no norte foram, em diferentes momentos, vítimas de novas perseguições.
Já na região sudeste, apesar da predominância demográfica dos ibos, a estratégia de ampliar sua influência sobre outros grupos é contestada por um grande número de minorias que inclusive se negaram a engajar do lado dos separatistas ibos durante a Guerra de Biafra.
Em resumo, o mapa religioso da Nigéria compreende três grandes blocos. O islamismo, majoritário entre as populações haussa-fulani do norte, vem crescendo junto aos iorubas do sudoeste. Os cristãos, majoritários no seio das etnias sulistas, especialmente junto aos ibos e das pequenas etnias vizinhas, estão presentes também em bolsões minoritários no norte do país. Por fim, os cultos animistas, são expressivos junto às populações do sul, especialmente entre os iorubas.
Como esses três grandes conjuntos religiosos não coincidem exatamente com a distribuição étnica, surgem situações complexas. Nas últimas décadas, o islamismo teve forte crescimento no sudoeste junto à etnia ioruba, modificando a imagem do islamismo nigeriano, até então marcadamente haussa-fulani.
A região norte tem sido, nas últimas duas décadas, palco constante de confrontações em função, de um lado, do crescimento de movimentos islâmicos radicais, estimulados por entidades religiosas financiadas por países do Oriente Médio (especialmente a Arábia Saudita) e, de outro, por uma onda de "nova evangelização" das etnias minoritárias não-muçulmanas encorajada por seitas protestantes. Nesse contexto, qualquer pequeno incidente pode resultar em explosões de violência que só ajudam a perpetuar as tensões.
O crescimento do islamismo mais radical tem se verificado sobre os fracassos dos modelos ocidentais que foram tentados pelos diferentes governos que o país já teve. Recusando o processo de globalização e condenando a excessiva ocidentalização das elites corruptas, esses movimentos têm recrutado simpatizantes especialmente entre o grande número de jovens sem perspectiva que se amontoam nas periferias e favelas das grandes cidades do norte do país. Eles se constituem em massa de manobra facilmente manipulável.
Dada a complexidade dos problemas internos do país e das tensões latentes acumuladas é quase um milagre que a Nigéria não tenha se desintegrado territorialmente.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Recursos oceânicos são alvo de disputas entre Estados

As primeiras fotos da Terra tomadas do espaço comprovaram algo já conhecido: nosso planeta deveria se chamar Oceano ou Água, no lugar de Terra. Cerca de 70% da superfície do planeta é recoberta por uma imensa massa líquida que alguns denominam Oceano Mundial, tradicionalmente dividido em entidades geográficas menores – o Pacífico, o Atlântico, o Índico e o Ártico. Cada um dos quatro oceanos engloba porções menores, os mares, delimitados normalmente por ilhas ou por recortes do litoral. Esse imenso mundo líquido, em constante movimento, condiciona a vida em nosso planeta.
Os oceanos desempenham papel crucial no equilíbrio ecológico mundial, pois regulam o clima e o ciclo da água, ensejam trocas gasosas com a atmosfera e influem na composição do ar. Além disso, apresentam uma vasta e rica biodiversidade composta por milhões de espécies, a maioria delas ainda pouco conhecida.
As características da água do mar – temperatura, salinidade, densidade – e diversos fatores externos que exercem influência sobre as massas líquidas, como os ventos, a força de Coriolis e a atração gravitacional lunar, determinam o deslocamento das águas oceânicas. Tais deslocamentos, que se verificam entre o fundo e a superfície e de um ponto para outro do globo, são responsáveis pelos fenômenos das marés e das correntes marinhas. Verdadeiros “rios” que cruzam os oceanos, as correntes marinhas interferem na variação das temperaturas e na distribuição das chuvas das regiões litorâneas sujeitas à sua ação.
As influências mais diretas do oceano sobre as áreas continentais não vão além dos 100 quilômetros da linha de costa. Nessas faixas, que não representam mais de um quinto das terras emersas, habita atualmente pouco mais da metade da população mundial. De acordo com as projeções, em 2025 a população das áreas litorâneas atingirá três quartos do total. Já hoje, cerca de 70% das maiores cidades do mundo são costeiras. Os ecossistemas costeiros são áreas de grande fragilidade ambiental As pressões exercidas por atividades humanas – como a pesca, o tráfego marítimo, a urbanização, as instalações industriais – causam impactos em graus de intensidade variável sobre os recifes coralíneos, os mangues, os estuários e a vegetação litorânea em geral.
Não há como negar a importância econômica dos oceanos e mares. Os oceanos são os grandes corredores do intercâmbio global de mercadorias: atualmente, cerca de 90% dos bens comercializados no mundo circulam através de navios. A atividade pesqueira, praticada de forma predatória, contribui para reduzir dramaticamente os estoques de determinados tipos de peixes, especialmente os de maior valor comercial.
Inúmeros recursos minerais, como ouro, níquel, magnésio e hidrocarbonetos, são encontrados nas águas rasas ou profundas dos oceanos. Cerca de 30% do petróleo do mundo é extraído em plataformas marítimas. Se o sal, o petróleo e outros minerais são extraídos há algum tempo, outras riquezas ainda aguardam o desenvolvimento de tecnologias capazes de reduzir os custos de extração. No entanto, os minerais escondidos sob os oceanos podem se tornar recursos essenciais em futuro não muito distante.
A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos do Mar, firmada em Montego Bay, nas Bahamas, em 1982, definiu a divisão geopolítica das águas oceânicas em mar territorial, mar contíguo e zona econômica exclusiva. Definiu-se também que cada país litorâneo exerceria soberania decrescente à medida em que aumenta a distância entre a costa e o alto mar. A partir daí, a soberania deixaria de existir. Decidiu-se ainda que o fundo do mar, fora da jurisdição nacional, passaria a ser considerado patrimônio comum da humanidade. Mesmo assim, as tentativas de imposição de leis internacionais mais rígidas de controle sobre abusos esbarram na soberania dos países sobre as águas territoriais e nas controvérsias a respeito da aplicação da legislação sobre as águas internacionais. Além disso, os Estados Unidos e alguns outros países rejeitaram a Convenção.
Por serem locais de passagem e de intercâmbios comerciais, e também por abrigarem recursos minerais e biológicos diversificados, os espaços marítimos são objeto de crescente competição internacional. As grandes potências, que possuem os meios mais eficazes para explorar os recursos marinhos, tendem a favorecer um regime de ampla liberdade de exploração das riquezas oceânicas. Por outro lado, os Estados menos desenvolvidos tentam tirar proveito de sua situação geográfica para estabelecer direitos sobre espaços marítimos mais amplos, nas proximidades de seu litoral. Tensões geopolíticas entre países relacionadas à soberania sobre áreas oceânicas pipocam por todos os lados, no mundo inteiro.
No Atlântico Sul, por exemplo, destaca-se a antiga disputa entre Grã-Bretanha e Argentina pela soberania sobre o arquipélago das Malvinas (Falklands). As ilhas foram ocupadas pelos britânicos no século XIX, gerando um situação de fato nunca reconhecida pelos argentinos. Os dois países travaram, em 1982, uma guerra pela posse das Malvinas. A derrota militar argentina acelerou a queda da ditadura no país sul-americano. A tensão reacendeu-se há pouco, após a decisão britânica de iniciar a exploração de petróleo na plataforma continental do arquipélago.
O petróleo ativa tensões e reivindicações sobre as águas oceânicas em outros lugares também. Na hipótese de continuidade do rápido derretimento da calota polar do Ártico, ficará aberta a via para a exploração de vastas reservas de petróleo e gás, estimadas como as maiores ainda remanescentes no mundo. Os países da região ártica, especialmente a Rússia, já tomam a iniciativa de requerer direitos sobre águas até agora consideradas internacionais.

O perfil das regiões, segundo a Pnad

Entre, vale a pena:

http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/infografico/pnad/perfil-por-regiao/2010/09/07/o-perfil-das-regioes-segundo-a-pnad.jhtm

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Do multiculturalismo à deportação

“O crápula da República”, estampou na capa a revista francesa Marianne de 7 de agosto, sobre uma foto do presidente Nicolas Sarkozy. Dias antes, em Grenoble, Sarkozy pronunciara um discurso odiento: “A nacionalidade francesa deve poder ser retirada de todas as pessoas de origem estrangeira que deliberadamente atentaram contra a vida de um policial, de um militar ou de qualquer outro agente da autoridade pública. (...) Eu sustento ainda que a aquisição da nacionalidade francesa por um menor delinquente no momento da maioridade não seja mais automática.”
A pretexto de combater a violência urbana, Sarkozy pressiona pela introdução de uma fronteira de sangue entre os cidadãos. Os “franceses de casta” acusados de delitos contra as autoridades conservariam seus direitos nacionais. Os franceses “de origem estrangeira” – isto é, para iluminar o que está implícito, os cidadãos de outra “etnia” – perderiam tais direitos, sujeitando-se à deportação. A mudança não pressupõe que ninguém seja acusado de um ato de delinquência. Antes disso, todas as pessoas de origem estrangeira teriam sido rebaixadas a cidadãos de segunda classe, pois possuiriam apenas uma nacionalidade precária, condicional.
Grenoble representou a conclusão coerente de uma trajetória, não um raio no céu limpo. O ponto de partida foi o multiculturalismo. O ponto de chegada é a deportação. Se há um paradoxo nisso, ele é apenas aparente.
Há três anos, Sarkozy criou um Ministério da Imigração e da Identidade Nacional. No nome, há uma tese: a imigração constituiria ameaça à identidade nacional, definida segundo critérios étnicos. A tese condensa uma reação contra a história republicana francesa. Desde a Constituição de 1793, que consagrou o princípio do direito da terra, a cidadania é definida como um contrato entre iguais: os habitantes da França. No lugar disso, o “crápula da República” recupera o mito monarquista da “França de mil anos”: o fruto do encontro entre os francos e a religião católica.
A Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen tenta restaurar o mito anacrônico por meio da celebração romântica do passado, que assoma na imagem santificada de Joana D’Arc. Sarkozy almeja um fim idêntico, mas pelo recurso ao multiculturalismo contemporâneo. Em 2008, o “crápula da República” encomendou um plano de ação em favor da “diversidade” e da “igualdade” entre as etnias. Tudo começaria com a reformulação do censo, para a produção de estatísticas étnicas da população. Na França, em nome do contrato republicano da igualdade, os censos não indagam sobre origem ou religião. Mas o projeto multiculturalista não pode viver sem isso, pois precisa colar rótulos étnicos em cada pessoa. Evidentemente, tais rótulos também são indispensáveis para identificar cidadãos de segunda classe e promover a deportação dos “indesejáveis”.
Tanto quanto no Brasil, o governo francês ganhou aplausos entusiasmados da rede de ONGs sustentadas pela Fundação Ford para a política de classificação racial dos cidadãos. Contudo, uma onda de resistência partiu de defensores de direitos humanos e de movimentos antirracistas. A escritora Caroline Fourest observou que “as estatísticas étnicas reforçarão o racismo”. Samuel Thomas, da organização SOS Racismo, conectou o discurso multiculturalista aos “nostálgicos da época colonial”. A feminista Fadela Amara qualificou as “estatísticas étnicas, a discriminação positiva, as cotas” como “uma caricatura”. E foi ao ponto: “Nossa república não deve se tornar um mosaico de comunidades. Nenhuma pessoa deve, uma vez mais, portar a estrela amarela”.
O “mosaico de comunidades” é o ideal do multiculturalismo. Na França, o recurso à “estrela amarela” propiciaria o delineamento de uma “nação gaulesa” circundada por uma miríade de “etnias minoritárias”. No Brasil, propicia a fabricação de um Estado binacional composto por uma “nação branca” (ou “eurodescedente”) e uma “nação negra” (ou “afrodescendente”). Lá, as minorias ganham a pecha de “estrangeiros”; aqui, todos seriam “estrangeiros” numa terra de exílio. Há mais uma diferença. A esquerda francesa, que acredita na democracia e enxerga-se como herdeira da Constituição de 1793, rejeita a rotulagem étnica. A esquerda brasileira, com honrosas exceções, cultua tiranias e despreza o princípio da igualdade política. Por isso, alinha-se com os arautos da política de raças.
Todos devem portar a estrela amarela – eis o programa do multiculturalismo. Também é a plataforma de Charles Wilson, líder de um partido neonazista americano que almeja enviar os negros e latinos “de volta a seus países”. Ele emprega uma linguagem paralela à dos nossos racialistas e reivindica algo que define como seus direitos raciais: “Eu tenho orgulho de ser branco. Estou falando de minha herança, e consideram isso um crime de ódio. Podemos dizer poder negro, poder latino, mas se você disser poder branco cai todo mundo em cima.”
Nos idos de 2006, o chefe da Frente Nacional reclamou do “excesso de negros” na seleção francesa de futebol. O zagueiro Thuram, nascido em Guadalupe, replicou oferecendo-lhe uma aula de história: “Não sou negro, sou francês. Le Pen deveria saber que assim como existem negros franceses, existem loiros e morenos. Viva a França! Mas não a França que Le Pen quer, e sim a França verdadeira.” É a “França verdadeira” que está em perigo quando o “crápula da República” tenta dividi-la segundo linhas oficiais de cor. Um “Brasil verdadeiro”, que vive na consciência das pessoas comuns de todas as cores, também está ameaçado pela maré montante das políticas raciais implantadas sob a cínica alegação do combate ao racismo.
“Como os militantes antirracistas poderiam apoiar o estabelecimento de categorias etno-raciais?”, pergunta, indignado, Samuel Thomas. Eis uma boa questão para os racialistas brasileiros que se travestem como militantes antirracistas.

domingo, 22 de agosto de 2010

Uma nova regionalização para o Nordeste

Na tradição da Geografia regional do Brasil, o Nordeste possui quatro unidades subregionais: Zona da Mata, Agreste, Sertão e Meio-Norte (Transição para a Amazônia). Os nomes indicam que o critério utilizado na operação de regionalização sofreu forte influência da análise das características naturais, em especial as climato-botânicas, e das atividades econômicas históricas. Entretanto, nas últimas décadas, o Nordeste vem sofrendo os impactos do processo de globalização e conhecendo profundas transformações econômicas. Tais mudanças solicitam uma nova divisão subregional, capaz de captar o dinamismo recente e o caráter mais complexo e diferenciado de todo o espaço regional.
Diante do anacronismo da divisão tradicional, com base em dados e estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), órgãos do governo federal elaboraram uma nova divisão subregional. A proposta não deixou de levar em conta os critérios climato-botânicos, expressos pela permanência parcial dos nomes Mata, Agreste e Sertão. Mas ela acrescentou outros, como a subregião do Cerrado, e articulou também o “fator” hidrográfico, ressaltando o papel dos rios São Francisco e Parnaíba, que funcionam como elementos de identificação de espaços subregionais. O resultado são nove regiões geoeconômicas: Litoral-Mata, Pré-Amazônia, Parnaíba, Sertão Setentrional, Sertão Meridional, São Francisco, Agreste Oriental, Agreste Meridional e Cerrado.
O Litoral-Mata abrange áreas de todos os estados, numa faixa que engloba a “antiga” Zona da Mata mais o litoral setentrional do Nordeste. Ela compreende quase metade da população regional, é a mais importante das subregiões e gera quase dois terços do PIB nordestino. Nesta área localizam-se todas as capitais nordestinas, com exceção de Teresina, e também as maiores concentrações urbano-industriais – inclusive Salvador, Recife e Fortaleza, as três maiores regiões metropolitanas. O turismo é a atividade responsável pela atração de um número cada vez maior de pessoas e figura, ao lado de expressivos investimentos externos, como fonte do dinamismo econômico. A porção baiana do Litoral-Mata, onde estão o Pólo Petroquímico de Camaçari e o Distrito Industrial de Aratu, abriga quase 13% da população e gera mais de 20% do PIB regional.
A Pré-Amazônia se estende pela porção oeste do Maranhão e corresponde em grande parte ao “antigo” Meio-Norte. Ela abriga cerca de 6% da população e produz pouco mais de 3% do PIB regional. A baixa densidade econômica da área poderá ser dinamizada através da agricultura diversificada de grãos, fruticultura tropical (caju) e da recuperação e manutenção de pastagens. Há também possibilidades relacionadas à implantação de indústria florestal moderna e sustentável.
A subregião Parnaíba abrange áreas do Maranhão e o Piauí. É uma das menores sub-regiões, concentra 4,6% dos nordestinos e seu PIB equivale a pouco mais de 3% do total. O principal núcleo da área é Teresina, principal aglomeração urbano-industrial do interior nordestino.
O Sertão Setentrional é a mais extensa das subregiões, estendendo-se por áreas de todos os estados, à exceção do Maranhão, Bahia e Sergipe. É a segunda subregião mais populosa e gera o segundo maior PIB regional (8,3%). Existe na área uma clara distinção entre os “novos” e “velhos” Sertões. Os primeiros estão representados, por exemplo, pelas cidades cearenses de Sobral e Crato, onde se localizam modernas indústrias de calçados. Os segundos, pela agricultura e pecuária extensiva, atividades tradicionais do semi-árido.
O Sertão Meridional compreende apenas áreas da Bahia e Sergipe. A subregião concentra pouco menos de 6% da população e seu PIB não chega a 3% do total do Nordeste.
A subregião do São Francisco abrange áreas da Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas. Abriga 4% da população e seu PIB equivale a 3,6% do total regional. Economicamente, é uma das subregiões com maior crescimento recente. A fruticultura irrigada de alto nível tecnológico tem nas cidades “gêmeas” de Juazeiro (BA) e, principalmente, Petrolina (PE) seus núcleos mais importantes. Pernambuco se tornou o segundo maior produtor de vinho do país.
O Agreste Oriental é a menor das subregiões, projetando-se por áreas do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. É a terceira mais populosa e responsável por mais de 5% do PIB nordestino. Campina Grande (PB) e Caruaru (PE), as “capitais do Agreste”, com suas indústrias têxteis e de calçados e centros avançados de pesquisas, destacam-se como os mais importantes núcleos urbanos.
Já o Agreste Meridional se estende por parte dos estados de Sergipe e Bahia. Na subregião se encontra quase 8% da população e seu PIB equivale a 5,7% do total regional. Nesta área, destacam-se as cidades baianas de Feira de Santana e Vitória da Conquista.
A subregião do Cerrado abrange áreas da Bahia, Maranhão e Piauí. É segunda maior em extensão, a menos populosa, e a que possui menor participação no PIB (2,8%). Paradoxalmente, apresenta os maiores ritmos de crescimento nos últimos anos. A expansão da cultura mecanizada de grãos, especialmente soja e milho, acompanhada pela criação de bovinos, decorre da ação de empresários rurais transferidos do Sul e do Sudeste. As cidades de Barreiras e Luiz Eduardo Magalhães, na Bahia, Elizeu Martins, no Piauí, e Balsas, no Maranhão, são os pólos dessa área.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Os caçadores e o elefante

A 20 de julho, no meio da tarde, em cerimônia no Palácio do Itamaraty, Lula sancionou a primeira lei racial da história do Brasil. São 65 artigos, esparramados em 14 páginas, escritos com o propósito de anular o artigo 5º da Constituição Federal, que começa com as seguintes palavras: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. O conjunto leva o título de Estatuto da Igualdade Racial, uma construção incongruente na qual se associa o princípio da igualdade ao mito da raça, que veicula a ideia de uma desigualdade essencial e, portanto, insuperável.
O texto anticonstitucional, aprovado a 16 de junho por um acordo no Senado, é uma versão esvaziada do projeto original. No acordo parlamentar, suprimiram-se as disposições que instituíam cotas raciais nas universidades, no serviço público, no mercado de trabalho e nas produções audiovisuais. Pateticamente, em todos os lugares exceto no título, o termo “raça” foi substituído pela palavra “etnia”, empregada como sinônimo. Eliminou-se ainda a cláusula que asseguraria participação nos orçamentos públicos para os “conselhos de promoção da igualdade étnica”, órgãos a serem constituídos paritariamente nas administrações federal, estaduais e municipais por representantes dos governos e de ONGs do movimento negro.
Mas o que restou é a declaração de princípios do racialismo. A lei define uma coletividade racial estatal: a “população negra”, isto é, “o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas”. Dessa definição decorre uma descrição racial do Brasil, que se dividiria nos grupos polares “branco” e “negro”, e a supressão oficial das múltiplas identidades intermediárias expressas censitariamente na categoria “pardos”. Implicitamente, fica cassado o direito de autodeclaração de cor/raça, pois o poder público arroga-se a prerrogativa de ignorar a vontade do declarante, colando-lhe um rótulo racial compulsório. O texto funciona como plataforma para a edificação de um Estado racial, uma meta apontada no artigo 4º, que prevê a adoção de políticas raciais de ação afirmativa e a “modificação das estruturas institucionais do Estado” para a “superação das desigualdades étnicas”.
A fantasia que sustenta a nova lei consiste na visão do Brasil como uma confederação de nações-raças. Nessa confederação, o princípio da igualdade deixaria de ser aplicado aos indivíduos, convertendo-se numa regra de coexistência entre coletividades raciais. Os cidadãos perdem o estatuto de sujeitos de direitos, transferindo-o para as coletividades raciais. Se o Poder Judiciário curvar-se ao esbulho constitucional, estudantes ou trabalhadores da cor “errada” não poderão apelar contra o tratamento desigual no acesso à universidade ou a empregos arguindo o princípio da igualdade perante a lei, pois terão sido rebaixados à condição de componentes de um grupo racial.
Nos termos do Estatuto Racial, que é um estatuto de desigualdade, a “população negra” emerge como uma nação separada dentro do Brasil. O Capítulo I fabrica direitos específicos para essa nação-raça no campo da saúde pública. O Capítulo II, nos campos da educação, da cultura, do esporte e do lazer. O Capítulo IV, nas esferas do acesso à terra e à moradia. O Capítulo V, na esfera do mercado de trabalho. O Capítulo VI, no tereno dos meios de comunicação. O pensamento racial imagina a África como pátria da “raça negra”. A nova lei enxerga a “população negra” como uma nação diaspórica: um pedaço da África no exílio das Américas. O Capítulo III determina uma proteção estatal particular para as “religiões de matriz africana”.
A supressão do financiamento público compulsório para os “conselhos de promoção da igualdade étnica” e dos incontáveis programas de cotas raciais na lei aprovada pelo Senado refletiu, limitada e parcialmente, o movimento de opinião pública contra a racialização do Estado brasileiro. Uma vertente das ONGs racialistas interpretou o resultado como uma derrota absoluta – e pediu que o presidente não sancionasse o texto esvaziado. Surgiram até vozes solicitando uma consulta plebiscitária sobre o tema racial, algo que infelizmente não se fará.
O ministério racial, que atende pela sigla enganosa de Seppir, entregou-se à missão de alinhar sua base na defesa do “Estatuto possível”. Para tanto, reuniu pronunciamentos de arautos do racialismo como o antropólogo Kabengele Munanga, uma figura que chegou a classificar os mulatos como “seres naturalmente ambivalentes”, cuja libertação dependeria de uma opção política pelo pertencimento ao grupo dos “brancos” ou ao dos “negros”. Na sua manifestação, o antropólogo narrou uma fábula sobre os caçadores Mbuti, da África Central, denominados pigmeus na época da expansão imperial europeia.
Os caçadores de Munanga almejam abater um elefante, mas voltam para a aldeia com apenas três antílopes, “cuja carne cobriria necessidades de poucos dias”. As mulheres e crianças, frustradas, contentam-se com tão pouco e não culpam os caçadores, mas Mulimo, Deus da caça, divindade desse povo monoteísta. Os caçadores voltarão à savana e, um dia, trarão o elefante.
A fábula é apropriada, tanto pelo seu sentido contextual como pelas metáforas que mobiliza. Ela remete a um povo tradicional, fechado nas suas referências culturais, que serviria como inspiração para a imaginária nação-raça diaspórica dos “afrobrasileiros”. Os caçadores simbolizam as lideranças racialistas, que já anunciam a intenção de usar o Estatuto Racial para instituir, por meio de normas infralegais, os programas de cotas rejeitados no Senado. O elefante representa o Estado racial completo, com fartas verbas públicas para sustentar uma burocracia constituída pelos próprios racialistas e dedicada à distribuição de privilégios.
Munanga não falou das guerras étnicas na África Central. É que o assunto perturba Mulimo e prejudica a caçada.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Uma nova visão geográfica sobre o Norte do Brasil

A Região Norte do Brasil possui extensão de mais de 3,8 milhões de km2, ocupando 45,3% do território nacional. Nela vivem cerca de 15 milhões de pessoas, quase 8% da população brasileira. Nas últimas décadas, os estados da região exibem os maiores ritmos de crescimento populacional do país.
Não é de hoje que a região desempenha o triplo papel de fronteira demográfica, econômica e geopolítica, atraindo investimentos, interesses dos mais variados e um significativo número de pessoas de outras áreas do Brasil. A região contribui com aproximadamente 5% do PIB nacional, uma participação cerca de dez vezes inferior a do Sudeste. Contudo, nas últimas décadas, o crescimento do PIB regional figura como o mais expressivo do país.
Estudo recente, baseado em informações do IBGE e em análises do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), sugeriu uma nova divisão do espaço regional, resultante da identificação de 24 Áreas Polarizadas (APs). A nova divisão proposta tem o objetivo de fornecer ao governo subsídios para uma ocupação em bases mais sustentáveis. O grande número de APs identificadas reflete a vasta superfície regional, na qual as paisagens naturais não se apresentam fisiográfica ou ecologicamente uniformes, e também as diferenciações no espaço geográfico geradas por dois séculos de valorização econômica da Amazônia brasileira.
Não se ignorou que, atualmente, três quartos dos habitantes da região vivem nas cidades, com grande concentração em Manaus e Belém, e que a rede urbana é muito pouco articulada, dispersa por um amplo território e servida por precária infra-estrutura, com impactos negativos nos fluxos de pessoas, bens e serviços. Levou-se em conta, ainda, a delimitação legal de vastas áreas interditas à ocupação (unidades de conservação e terras indígenas), criadas com finalidade de proteger o patrimônio ambiental e étnico-cultural. Estima-se que sofrem bloqueios totais ou parciais de uso quase 1,3 milhão de km2 – cerca de 30% da área regional.
De certa maneira, pode-se dizer que o estudo lançou um olhar sobre o Norte do país através de uma espécie de “lupa geográfica” que possibilita o detalhamento das características demográficas e sócio-econômicas da região Das 24 APs, seis se situam no Pará, seis no Amazonas, quatro em Tocantins e duas em cada um dos estados restantes.
As APs foram classificadas em quatro tipos. O primeiro e mais importante abrange Manaus e Belém. As duas metrópoles concentram grande parte da população e do PIB de seus respectivos estados, que juntos abrigam 70% da população e geram cerca de dois terços do PIB regional. Em Belém, vive um terço dos paraenses e a cidade gera quase 45% do PIB estadual. Em Manaus a “macrocefalia” demográfica e econômica é ainda maior: quase 60% da população e cerca de 85% do PIB.
No segundo tipo estão oito APs, entre as quais duas no Pará: Tucuruí-Marabá e Castanhal-Bragança. A primeira concentra cerca de 20% da população e gera 30% do PIB estadual. A sua importância demográfica e econômica está relacionada, principalmente, aos efeitos da presença da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, à atividade de extração mineral na Serra dos Carajás e ao avanço da agropecuária moderna. Já a AP de Castanhal-Bragança funciona como pólo de complementaridade econômica de Belém.
As seis outras APs de segundo tipo estão localizadas em Rondônia, Acre, Roraima, Amapá e Tocantins. Essencialmente, elas refletem o poder de polarização exercido pelas capitais estaduais. As APs de terceiro e quarto tipo, num total de 14, estão espalhadas por todos os estados da região e apresentam menor importância.
A principal conclusão do estudo é que a ocupação e a valorização econômica do Norte deve ser espacialmente seletiva e descontínua, a fim de proteger o patrimônio ambiental, promover o aproveitamento sustentável dos recursos naturais e assegurar a proteção das populações, culturas e terras indígenas. A estratégia proposta deve induzir a uma “desconcentração concentrada” do povoamento nas AP de terceiro e quarto tipos, reduzindo a migração para as maiores cidades e fortalecendo centros urbanos menores, nas faixas de fronteiras internacionais do país.
A proposta de divisão subregional vem acompanhada por uma série de metas de desenvolvimento: estimular a pesquisa em biotecnologia, promover o uso sustentável da biodiversidade, induzir a uma mudança do paradigma produtivo, apoiar um novo tipo de extrativismo, controlar a mineração predatória, dar ênfase à bioindústria com matérias-primas fornecidas pela floresta e incentivar o ecoturismo. Essa lista de metas enfrentará, evidentemente, um grande obstáculo para sua implementação: os poderosos e conflitantes interesses envolvidos.
Há diferenças e semelhanças entre a nova proposta e o Plano Amazônia Sustentável (PAS), lançado pelo governo federal em 2004. Uma das principais diferenças é de cunho espacial, já que o estudo do IPEA/IBGE tem como base a Região Norte, enquanto o PAS usa como referência o conceito de Amazônia Legal. As semelhanças encontram-se nas estratégias e nos objetivos a serem alcançados. De maneira geral, nos dois casos, acredita-se que a preservação ambiental depende do desenvolvimento econômico e social. E que um desenvolvimento de caráter sustentável depende do impulso da modernização tecnológica.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Os muçulmanos no Extremo Oriente e Europa

Cerca de 70% dos muçulmanos do mundo estão presentes no continente asiático. Contudo, a região da Ásia com menor expressão de pessoas que seguem o islamismo localiza-se no Extremo Oriente, mais especificamente na porção oeste-noroeste da China.
Nessa porção do território chinês está a Região Autônoma do Xinjiang-Uigur, área com mais de 1,6 milhões de km2 onde convergem as fronteiras internacionais da China com a Mongólia, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Paquistão.Essa região é em grande parte desértica e semi-árida, emoldurada por altos planaltos (Tibete, por exemplo) e cadeias montanhosas como as do Altai e Tian Shan. Em seu interior encontram-se também grandes depressões como a de Dzungária e a do rio Tarim.
Com cerca de 20 milhões de habitantes, o Xinjiang-Uigur tem na etnia uigur aquela de maior expressão demográfica perfazendo um pouco menos de 50% do contingente regional. Com uma população numericamente semelhante estão os chineses han, a etnia majoritária em toda a China. O restante da população, um pouco menos de 10%, é composta por povos centro-asiáticos vizinhos como cazaques, quirguizes e tajiques.Os uigures são muçulmanos sunitas de cultura turca, presentes nessa região desde o século VIII e que se converteram ao islamismo oito séculos depois.
Por conta de sua localização estratégica, uma espécie de ponte entre as estepes russas e as áreas densamente povoadas da China litorânea do Pacífico, o Xinjiang (outrora denominado Turquestão chinês) ao longo da história foi objeto de domínio e interferência de povos como mongóis, russos e chineses han. Mais recentemente, no início da década de 1950, logo após o triunfo da Revolução Chinesa de 1949, o governo de Pequim passou a desenvolver políticas de promoção de desenvolvimento econômico e de efetiva ocupação territorial da região.
Deu-se início à exploração das jazidas minerais, especialmente petróleo, implantaram-se algumas indústrias bélicas e uma das áreas da região, nas imediações do lago Lop Nor, foi palco dos testes atômicos subterrâneos chineses, há alguns anos interrompidos. Por outro lado, o governo central estimulou o aumento sistemático de populações han, que tiveram sua participação multiplicada por quatro nos últimos 50 anos. Os han estão presentes especialmente nas cidades como em Urumqi, a capital, e centros industriais da região. Essa contínua e persistente “invasão” dos han tem aguçado, nos últimos tempos, o antagonismo com os uigures, muitos dos quais não têm se mostrado insensíveis às idéias de movimentos muçulmanos extremistas. Na última década ocorreram alguns atentados na região.
O Xinjiang-Uigur teve aumentado ainda mais sua importância estratégica e geoeconômica em função não som pela recente descoberta de jazidas de hidrocarbonetos, mas também pelo fato de que por ali deverá passar um grande oleoduto que conectará as jazidas do Cazaquistão e da Sibéria Ocidental às regiões costeiras chinesas. Foi nesse contexto que no final da década de 1990, China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Uzbequistão formaram o Grupo de Xangai, cujo objetivo consiste em lutar contra o tráfico ilícito, promover o desenvolvimento econômico da área, mas principalmente lutar contra o terrorismo separatista e o extremismo religioso.
Povos turcófonos, isto é, muçulmanos de cultura turca como os uigures não são os únicos seguidores do islamismo na China. Há pelo menos 10 milhões de muçulmanos chineses da etnia han presentes em inúmeras províncias do país. Esses muçulmanos chineses, denominados hui, são especialmente numerosos na província de Ningxia.
Já os muçulmanos presentes no continente europeu podem ser divididos em dois grandes grupos. O primeiro deles é o dos muçulmanos que passaram a se dirigir para a Europa a partir da segunda metade do século XX. Essa migração teve como causas principais o processo de descolonização afro-asiática e a necessidade de mão-de-obra não especializada por parte dos europeus. É claro que as precárias condições de vida desses novos países foi também a causa importante desses fluxos migratórios intercontinentais.
Os países europeus que mais receberam esses imigrantes foram a França, a Grã Bretanha e a Alemanha. No caso dos dois primeiros, os imigrantes que para lá se dirigiram eram provenientes, sobretudo das antigas colônias francesas e britânicas. Assim, para a França a área de origem dos imigrantes era principalmente a região do Magreb africano, especialmente do Marrocos e Argélia. No caso da Grã Bretanha, grande parte dos indivíduos era originária do subcontinente indiano, isto é, Paquistão e Índia.
Já a Alemanha, o país que mais recebeu imigrantes na Europa, a questão de antigas colônias não se colocava, pois este país, ainda quando era o Império Alemão, perdeu todas as suas possessões coloniais ao fim da Primeira Guerra Mundial. Em solo germânico, parte considerável dos muçulmanos tinha como área de origem a Turquia.
O segundo grande grupo de muçulmanos presentes na Europa corresponde àqueles que estão presentes no continente há vários séculos. Eles estão concentrados especialmente na Península Balcânica, com destaque para dois países onde são maioria da população: na Albânia e na Bósnia, sem contar o caso especial de Kosovo. Nas vizinhas Macedônia, Bulgária e Sérvia, os indivíduos que professam o islamismo são minorias mais ou menos significativas.
A presença desses muçulmanos na porção sudeste do continente europeu está ligada historicamente à expansão e domínio do Império Otomano que se estendeu do século XIV até o início do século XX. O mais emblemático e complexo exemplo dos países que fazem parte desse grupo é a Bósnia.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Olhares.com

Fotos com um olhar diferenciado de um grande mestre historiador, Professor Edgard.
Sem duvida nehuma vale a pena.
http://br.olhares.com/edgardchaves

terça-feira, 1 de junho de 2010

Grandes linhas do plano estratégico de defesa do Brasil

A criação da Frente Parlamentar de Defesa Nacional, em novembro de 2008, integrada por 227 parlamentares, teve como objetivo dar sustentação no Congresso para o Plano Estratégico de Defesa Nacional, elaborado pelo Ministério da Defesa. Será que o Brasil necessita de um plano como esse?

Seus defensores afirmam que sim, pois ele responde a uma necessidade estratégica do país. Nas últimas décadas, o Brasil cresceu e se desenvolveu, ampliando seu protagonismo internacional ganhando peso nas decisões internacionais – ao mesmo tempo em que permaneceram estagnadas suas estratégias de defesa. Os idealizadores do plano argumentam que ele foi concebido para funcionar como um escudo protetor para o desenvolvimento nacional.

São poucos os países do mundo que atualmente não reúnem suas forças armadas num único órgão de defesa, subordinado ao chefe do Poder Executivo. No Brasil, até 1999, as três forças (Exército, Marinha e Aeronáutica) funcionavam com ministérios distintos. A idéia de um Ministério da Defesa, integrando essas três forças militares é antiga, mas só em 1995 o assunto veio à tona, quando o então presidente, Fernando Henrique Cardoso anunciou em seu plano de governo que estava prevista a criação do Ministério da Defesa.

Nos anos seguintes, realizaram-se os estudos que definiram as diretrizes para a implantação do novo ministério. Em janeiro de 1999 foi nomeado um ministro Extraordinário da Defesa, incumbido da implantação do órgão, e cinco meses depois criava-se oficialmente o novo ministério. Desde sua criação o cargo de ministro de Defesa tem sido exercido por um civil. A mensagem simbólica é que os homens com armas estão subordinados aos representantes eleitos pelo povo, algo relevante num país que conheceu duas décadas de ditadura militar.

Os temas geopolíticos e estratégicos permaneceram, durante muito tempo, mais ou menos restritos à oficialidade militar e à Escola Superior de Guerra (ESG). Com o Ministério da Defesa, ampliou-se o intercâmbio de ideias entre militares e civis. As universidades e os políticos passaram a participar da formulação de conceitos sobre a segurança nacional e a defesa.

A nova Estratégia Nacional de Defesa é baseada em três grandes eixos. O primeiro deles diz respeito à reorganização das Forças Armadas no sentido de que elas desempenhem de forma mais efetiva sua destinação e atribuições constitucionais, tanto na paz como em caso de guerra. Do ponto de vista da distribuição geográfica das Forças Armadas, o Plano indica que o Exército deverá ter o seu núcleo central em Brasília, pois estando na região central do país seus efetivos podem se deslocar com maior rapidez para as demais regiões.
A Marinha deverá ampliar sua influência nas bacias hidrográficas do Amazonas e Platina, áreas que o país compartilha com quase todos os vizinhos da América do Sul. Ela deverá também estar cada vez mais presente no litoral e águas territoriais, especialmente na faixa do pré-sal, faixa marítima localizada entre os estados do Espírito Santo e de Santa Catarina. Serão também ampliados os sistemas de vigilância das instalações navais e portuárias, arquipélagos e ilhas. Caberá à Força Aérea atuar em auxílio ao Exército e à Marinha, adequando a localização das suas unidades de transporte aéreo a fim de propiciar rápido apoio às demais forças.

O contingente militar deverá ser ampliado junto às fronteiras terrestres com as Guianas e Venezuela e na região conhecida como “Cabeça de Cachorro”. Esta área, onde ficam nossas fronteiras com a Colômbia, o Peru e a Bolívia, merecerá maior atenção por conta de crimes internacionais, especialmente os relacionados ao narcotráfico. A intensificação da presença militar junto às fronteiras da porção setentrional do país está ligada não só a eventuais ameaças externas, mas também destina-se a fiscalizar, no território brasileiro, áreas legalmente demarcadas interditas à livre ocupação (unidades de conservação e terras indígenas), estabelecidas para proteger o patrimônio ambiental e étnico-cultural.

O segundo grande eixo do Plano refere-se à reorganização da indústria nacional de material bélico. O plano sugere a elaboração de um marco regulatório, com tributação especial para as empresas privadas de defesa, de modo a assegurar a continuidade nas compras públicas. O Estado passaria a ter um poder estratégico sobre as empresas, podendo impor listas de equipamentos a partir dos interesses nacionais. Em contrapartida, haveria até mesmo a hipótese de liberação dessas empresas das regras gerais das licitações públicas.

Uma grande ênfase é dada à meta de compartilhar o conhecimento das tecnologias sensíveis de defesa nas parcerias com empresas estrangeiras. Essas parcerias deverão se basear no critério de cooperação e atender ao objetivo de ampliar as capacitações tecnológicas nacionais, reduzindo a dependência de insumos bélicos produzidos no exterior.

O terceiro eixo do Plano diz respeito à composição das forças militares de defesa. A proposta é que seja mantido o serviço militar obrigatório, mas sugere-se que as Forças Armadas sejam as responsáveis pela seleção dos mais bem preparados. Tal seleção será pautada por dois critérios: a combinação do vigor físico com a capacitação analítica e a representatividade de todas as classes sociais e regiões do país. Os que não forem incorporados ao serviço militar poderão prestar serviços sociais, atividades que poderão ser realizadas em regiões diferentes das de origem dos convocados.

A estratégia proposta tem o horizonte de 50 anos e envolve uma revisão nos recursos do orçamento nacional destinados ao Plano, além de exigir estreita cooperação entre vários ministérios. Dada a complexidade do tema, dos obstáculos e dos interesses envolvidos, as discussões para a aprovação do Plano de Defesa certamente se estenderão por um longo tempo.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

A importância do poder aéreo

Há pouco mais de um século, o brasileiro Alberto Santos Dumont foi o primeiro homem a realizar um vôo a bordo de um veículo aéreo mais pesado que o ar. Em 23 de outubro de 1906, em Paris, perante inúmeras testemunhas, o “14 Bis” alçou vôo e se constituiu num marco histórico para a aviação. Embora essa primazia seja objeto de questionamentos, Santos Dumont é considerado o brasileiro que mais se destacou na história da aviação mundial. Até certo ponto, pode-se debitar o sucesso atual da Embraer (Empresa Brasileira de Aeronáutica) à experiência pioneira daquele que recebeu a alcunha de “pai da aviação”.

Desde então, a aviação vem apresentando uma rápida e contínua evolução tanto no que diz respeito ao uso de aviões no transporte voltado para fins comerciais (carga e passageiros), como no que tange aos usos de caráter militar. A expansão do transporte de cargas em larga escala teve grande aceleração a partir do final da Segunda Guerra Mundial e o transporte de pessoas “explodiu” com o aumento da atividade turística (férias e negócios), a partir da segunda metade da década de 1980.

O maior fluxo de cargas e passageiros, assim como o maior número de rotas áreas concentram-se no hemisfério norte tendo como pontos nodais os Estados Unidos, os países da Europa Ocidental e os do Extremo Oriente. Não coincidentemente, esse maior movimento ocorre nas áreas do mundo onde se localizam as economias mais desenvolvidas.

Isso pode ser comprovado por alguns dados: os aeroportos com o maior movimento de passageiros são os de Atlanta, (82 milhões) e de Chicago (75 milhões), ambos nos Estados Unidos. O de maior tráfego aéreo internacional é o de Heatrow, Londres (média de 460 mil pousos/decolagens/ano). O de maior movimento de cargas é o de Memphis (EUA). O aeroporto de Guarulhos-São Paulo, um dos mais movimentados do “sul subdesenvolvido”, ocupa apenas o 65º lugar no ranking de passageiros.

A importância do conhecimento e domínio dos espaços físicos que atendessem a objetivos geopolíticos dos Estados ensejou o surgimento de teorias geopolíticas relacionadas a idéias de domínio e poder mundial. Uma das mais importantes dessas teorias foi a do poder marítimo desenvolvida pelo norte-americano Alfred Mahan no século XIX. Ele defendia a idéia de que o controle dos mares para fins comerciais e militares era um fator crucial para que um país tivesse relevância política no contexto internacional.

Já a teoria do poder continental teve no britânico Halford Mackinder seu grande expoente. Sua idéia principal era baseada no fato de que uma determinada porção do território da Eurásia, especificamente a região da Europa centro-oriental “emanaria” uma espécie de poder e o país que tivesse o controle dessa área, o hearthland, teria condições de exercer o poder mundial. As idéias de Mackinder influenciaram sobremaneira a demarcação das novas fronteiras surgidas na Europa Oriental ao final da Primeira Guerra Mundial, cujo exemplo emblemático foi a criação do corredor polonês de Dantzig.

A mais recente dessas teorias geopolíticas foi a do poder aéreo que teve como ideólogo Alexander Severky, em plena Segunda Guerra. Segundo ele, a cena principal e decisiva dos conflitos modernos não estaria na terra, nem no mar, mas no “oceano de ar”. Essas considerações, até certo ponto, permeiam ainda hoje o conceito de poder aéreo.

A soberania sobre o espaço aéreo existente sobre os espaços nacionais é uma noção recente na história e só teve razão de existir com o advento do avião. Até a Primeira Guerra Mundial o sobrevôo de um país não era objeto de restrições. A crescente importância estratégica da aviação levou primeiramente à uma limitação do sobrevôo apenas abaixo de uma determinada altitude.

Quando se percebeu o grande valor da aviação na observação e coleta de informações cada vez mais precisas sobre localizações estratégicas e o poder de destruição dos aviões de ataque, as restrições para o uso dos espaços aéreos nacionais ficaram cada vez mais restritas. Atualmente, o conceito de soberania sobre o espaço aéreo está relacionado com a capacidade de cada país em impedir o sobrevôo de seu território por aeronaves não autorizadas. A implantação do Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia) exemplifica as preocupações com o controle do espaço aéreo brasileiro.

É claro que países como os Estados Unidos, detentores satélites-espiões equipados com sofisticados sistemas de observação que orbitam ou estão semi-estacionários na alta atmosfera têm a capacidade de obter informações de tal forma que têm colocado em xeque o conceito de soberania sobre os espaços aéreos nacionais.

Por outro lado não deve se esquecer que o primeiro evento importante da política internacional no início do século XXI, os ataques às Torres Gêmeas e ao Pentágono, teve como “protagonista” o invento longinquamente criado por Santos Dumont.

sábado, 15 de maio de 2010

Ações nos bastidores

Estamos entrando em um período de grandes mudanças. E são sinais dos tempos ouvir que o Fundo Monetário Internacional quer regular e taxar a circulação internacional dos capitais. Mesmo os grandes bancos privados começam a se dar conta, porque vários quebraram, que deixados à sua sina caminham para uma disputa alucinada e para a própria destruição.
Por outro lado, avaliações do impacto da crise nos diferentes países ressaltaram o importantíssimo papel que tiveram os bancos públicos, com uma ação coordenada, para enfrentar esse cenário adverso. Países como a Índia, que nacionalizou seus bancos, ou o Brasil, que tem quase metade do seu sistema financeiro público, sofreram menos por disporem desses recursos públicos e da capacidade de gestão para mobilizá-los na crise.
Abre-se, assim, um debate represado há muitos anos, que hoje conta com uma maior audiência: o do controle público sobre o sistema financeiro nacional e internacional e as transações financeiras internacionais. Dito de outra forma, mais abrangente: a crise abriu a possibilidade de se instituir novos controles democráticos sobre a economia.
No auge da crise foram eles, os principais agentes financeiros privados, que desenharam o pacote de ajuda do governo estadunidense a si próprios. E aceitaram, pelo impacto social enorme de suas próprias ações, pelos efeitos sociais perversos da crise, pelas questões de governabilidade, debater um novo pacto de regulação do sistema financeiro, incluindo um maior controle sobre os paraísos fiscais.
As últimas estimativas são de que, globalmente, foram destinados mais de US$ 13 trilhões de recursos públicos para salvar as grandes corporações privadas. Nunca havia se visto tanta riqueza mobilizada do dia para a noite. Como essas grandes corporações foram capazes de impulsionar, com tamanha rapidez, tantos recursos públicos no seu interesse privado?
John Dewey, um dos mais proeminentes filósofos americanos do século XX, concluía que a política em nossos países é definida, nos bastidores, pelas grandes corporações, e que vai continuar sendo assim enquanto o poder residir nos negócios orientados para o lucro, através do controle privado dos bancos, da terra, da indústria, reforçado pelo comando da imprensa, dos jornalistas e de outros meios de publicidade e propaganda.
O neoliberalismo dos anos 1990 fez mais. Construiu todo o arcabouço legal e institucional para que a política não tocasse na economia, não tocasse nos interesses “do mercado”. Políticas como a de um Banco Central independente são expressão dessa engenharia institucional.
No Brasil, dinheiro e poder continuam associados, mas temos tido avanços nas dimensões republicana e democrática das ações do poder público. Há uma ação mais efetiva do sistema judiciário e da polícia federal no combate à corrupção na política, que acabou por afastar governadores, executivos e parlamentares dos cargos, acusados de uso privado do dinheiro público, de captação ilícita de recursos para campanhas eleitorais, de favorecimentos a empresas em licitações para obras e serviços públicos. Mas, apesar desses avanços, não se tem notícia da penalização das empresas envolvidas – supostamente, os agentes corruptores. Há também várias iniciativas da sociedade civil, que vão desde a defesa de uma reforma política até o projeto de lei que impede a candidatura de pessoas condenadas pela Justiça, batizado de Ficha Limpa, apresentado ao Congresso como projeto de lei de iniciativa popular, respaldado por 1,5 milhão de assinaturas.
A abordagem mais comum para tratar do tema dos abusos do poder econômico na arena da política acaba por acusar a natureza humana – e os políticos de maneira geral – por se deixar seduzir pelo dinheiro. Esquecem do que Dewey aponta como “as ações nos bastidores”, que são constitutivas mesmo do modo de fazer política das grandes corporações.
Pois o que está em questão agora é justamente a possibilidade de um novo desenho institucional, da realização de um novo pacto, no qual, em nome do interesse de todos, os atores econômicos passam a atuar nos marcos de um planejamento público e um controle democrático. Serão novos paradigmas de produção e consumo, serão novas formas de exercício da democracia e do controle social incidindo sobre os poderes públicos e os atores econômicos.
Ainda que as lutas sociais tenham ampliado, ao longo do tempo, o que hoje entendemos por democracia, o reconhecimento de direitos e a extensão de políticas sociais, na dimensão propriamente política parece não ter havido grandes avanços. A pergunta continua sendo como garantir que a democracia controle a economia – e não o contrário.
Para que essa política dos bastidores e a corrupção na política possam ser superadas, as regras do jogo precisam mudar. O financiamento das campanhas eleitorais está no centro desse debate. E se adotássemos, por exemplo, as regras de financiamento de campanhas eleitorais de Quebec, no Canadá, onde todos os candidatos têm um teto para a arrecadação de contribuições? Ou o financiamento público exclusivo de campanhas eleitorais, proibindo as contribuições do setor privado?
O tema central do pacto pode ser o de tirar a política dos bastidores e trazê-la para o centro do espaço público, apaziguar a sociedade brasileira, promover a redução da enorme desigualdade social, a redução da violência em nossa sociedade e garantir a extensão das políticas públicas de qualidade por todo o território.

Silvio Caccia Bava é editor de Le Monde Diplomatique Brasil e coordenador geral do Instituto Pólis.

Ouro Azul

Dentre os graves problemas ambientais do século XXI, dois se destacam: a questão do aquecimento global e a escassez de água. Em relação às questões referentes à água deve-se ressaltar que apesar de cerca de 75% da superfície do planeta ser recoberta por massas líquidas, a água doce representa apenas 2,5% desse total. O problema é que apenas uma minúscula parcela (cerca de 1%) dessa água doce, presente nos rios, lagos, lençóis freáticos superficiais e atmosfera é acessível ao homem. O restante desse “estoque” está imobilizado nas geleiras, calotas polares e lençóis freáticos profundos.

A água potável é um recurso finito, que se reparte desigualmente pela superfície terrestre. Por seu ciclo natural a água é um recurso renovável, mas suas reservas não são ilimitadas. Especialistas têm alertado que, se o consumo continuar crescendo como nas últimas décadas, todas as águas superficiais do planeta estarão comprometidas em 2.100.

No século XX, a população mundial foi multiplicada por três, as superfícies irrigadas por seis e o consumo global de água por sete. Nas últimas cinco décadas a poluição dos mananciais reduziu dramaticamente as reservas hídricas em um terço. Atualmente cerca de 50% das terras emersas já enfrentam um estado de penúria em água. Pelo menos 20% da humanidade não tem acesso à água de boa qualidade para consumo e cerca de metade dos habitantes do planeta não dispõe de uma rede de abastecimento satisfatória.

A carência de água é resultado da combinação de fatores naturais, demográficos, sócio-econômicos e até culturais. Os estoques de água potável hoje disponíveis para o uso humano dariam para sustentar muito bem pelo menos o dobro da população atual. A questão é que os recursos hídricos não se distribuem equitativamente pela superfície da Terra.

Nas áreas desérticas e semi áridas, como o norte da África ou Oriente Médio, as chuvas são inexistentes, escassas ou irregulares. Juntando-se a este fator um alto crescimento demográfico, poluição de mananciais, má utilização dos recursos hídricos e desperdício surge o “estresse hídrico”, situação na qual os habitantes de uma determinada área consomem em média menos de 2000 litros de água por ano.

A escassez de água tem criado tensões e conflitos entre países por conta de disputas pelo controle e utilização de fontes de águas superficiais, especialmente rios, quando estes atravessam territórios de duas ou mais nações. As tensas relações entre palestinos e israelenses no vale do Jordão ou entre Síria, Iraque e Turquia nos vales dos rios Tigre e Eufrates, ilustram essas situações denominadas hidroconflitivas.(ver mapa)

Das 260 bacias hidrográficas consideradas internacionais, 75% possuem áreas compartilhadas por dois países e as restantes por grupos de três ou mais países. Como não existe uma legislação internacional suficientemente clara a respeito, são raros os casos em que países estabelecem acordos de utilização comum dos recursos hídricos. Por isso podem ser identificadas atualmente dezenas de áreas com situações reais ou potencialmente hidroconflitivas.
Vários índices podem ser utilizados para se fazerem análises dos recursos hídricos superficiais. Um dos que permite estabelecer interessantes conexões geográficas e geopolíticas é o índice denominado “dependência de água”. Ele se refere à porcentagem de água renovável de um país (fundamentalmente de rios), vinda de fora de seu território.

De imediato, chega-se a uma série de conclusões inevitáveis. Os países localizados à montante têm, a princípio, menor dependência de água do que aqueles situados à jusante. Obviamente, países insulares pequenos como os do Caribe ou de média/grande extensão como Madagascar ou a “ilha-continente” da Austrália tem 0% de dependência.

Se tomarmos como objeto de análise alguns dos países mais extensos do mundo teremos algumas surpresas. Por exemplo, o índice de dependência da China, apesar dos seus graves problemas hídricos, é de apenas 1%. Afinal o Planalto do Tibete é também estratégico porque se constitui numa verdadeira “caixa d’água” dos rios que drenam exclusivamente o território chinês (o Iangtsé, por exemplo), como também daqueles que fluem para o Subcontinente Indiano (o Bramaputra) ou para o Sudeste Asiático (o Mekong).

Outros países de grande superfície como a Rússia, o Canadá e os Estados Unidos com índices de dependência de 4%, 2% e 8%, respectivamente ensejam, quando da observação de um mapa físico e político, análises geográficas e geopolíticas curiosas e, até certo ponto, surpreendentes como no caso brasileiro.

O Brasil possui o maior estoque de recursos hídricos do mundo (cerca de 13%) e uma vasta e densa rede hidrográfica, mas seu índice de dependência é de 34%. Apesar de grande parte dos rios da Bacia Platina e da totalidade de importantes bacias, como as do São Francisco e a do Tocantins-Araguaia, se situarem em território brasileiro, parcela considerável da área da Bacia Amazônica, especialmente os altos vales do rio principal e muitos de seus caudalosos afluentes situam-se fora do espaço nacional do país.

Por outro lado, países situados em várias partes do mundo apresentam altos índices de dependência como são os casos do Egito (97%), Hungria (94%), Holanda (88%), Turcomenistão (97%), Síria (80%), Bangladesh (91%), Paraguai (72%) e Argentina (66%). Quase todos eles, em maior ou menor grau, vivem ou viveram recentemente “tensões hidroconflitivas” com seus vizinhos.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Alimentos contaminados

O Brasil é o maior mercado de agrotóxicos do mundo e representa 16% da sua venda mundial. Em 2009, foram vendidas aqui 780 mil toneladas, com um faturamento estimado da ordem de 8 bilhões de dólares. Ao longo dos últimos 10 anos, na esteira do crescimento do agronegócio, esse mercado cresceu 176%, quase quatro vezes mais que a média mundial, e as importações brasileiras desses produtos aumentaram 236% entre 2000 e 2007. As 10 maiores empresas do setor de agrotóxicos do mundo concentram mais de 80% das vendas no país.

Esses produtores viram ameaçadas suas novas metas de faturamento com o anúncio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de que se propõe a reavaliar o uso de 13 produtos agrotóxicos, vários deles já proibidos há anos nos EUA, na União Europeia, e em países como Argentina, Nigéria, Senegal, Mauritânia, entre outros, como o acefato e o endossulfam. Os motivos dessa proibição são evidentes, a contaminação de alimentos, de trabalhadores rurais, e do meio ambiente, causando, literalmente, o envenenamento dos consumidores, a morte de trabalhadores rurais e a destruição da vida animal e vegetal.

Em solicitação ao Ministério Público para a proibição de um desses agrotóxicos – o Tamaron – os então deputados federais Fernando Dantas Ferro, Adão Preto e Miguel Rosseto denunciam que 5 mil trabalhadores rurais morrem, a cada ano, intoxicados por venenos agrícolas, sendo que muitos mais são afetados de maneira grave pela ingestão dos componentes químicos desses produtos.

Frente à disposição da Anvisa de reavaliar produtos como Gramoxone, Paraquat, Tamaron, Mancozeb, Monocrotfos, Folidol, Malation e Decis, o Sindag – Sindicato das Indústrias de Defensivos Agrícolas – recorreu ao Judiciário, solicitando que não sejam publicados os resultados das reavaliações. Houve mesmo iniciativas no Judiciário que pretendiam proibir os estudos da Anvisa que verificavam a segurança das substâncias de 99 agrotóxicos.

O fato é que o setor ruralista, com o Ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes à frente, a bancada ruralista e os fabricantes de agrotóxicos se puseram a campo contra a iniciativa da Anvisa, e mesmo contra a própria Anvisa e o seu papel fiscalizador. Segundo documento obtido pela ABRANDH – Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos, o Ministério da Agricultura quer ser o responsável pela avaliação e registro dos produtos agrotóxicos.

Para Rosany Bochner, especialista em toxicologia da Fiocruz, instituição parceira da Anvisa no trabalho de reavaliação dos agrotóxicos, “o Brasil está virando um grande depósito de porcarias. Os agrotóxicos que as empresas não conseguem vender lá fora, que têm indicativo de problemas, são empurrados para a gente”.1

Em 2002, com o início do funcionamento do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, coordenado pela Anvisa, surgiram informações preocupantes. Das 1.198 amostras recolhidas em nível nacional, 17,28% apresentavam índices de contaminação acima do permitido para se preservar a saúde. O tomate, o morango e a alface são os mais contaminados. Se você come amendoim, batata, brócolis, citros, couve, couve-flor, feijão, melão, pimentão, repolho, entre outros alimentos, cuidado! Eles contêm acefato, um agrotóxico que pode causar danos ao cérebro e ao sistema nervoso e provocar câncer no longo prazo. O acefato é proibido em toda a União Europeia.

Segundo o IDEC – Instituto de Defesa do Consumidor, “o consumidor brasileiro está exposto a um risco sanitário inaceitável, que exige medidas rigorosas dos órgãos governamentais responsáveis, inclusive com a punição dos infratores”.

Essa denúncia decorre do levantamento e análise da Anvisa, feito de junho de 2001 a junho de 2002, onde nada menos que 81,2% das amostras analisadas (1051 casos) exibiam resíduos de agrotóxicos e 22,17% apresentavam índices que ultrapassavam os limites máximos permitidos.

Atualmente os agrotóxicos estão em reavaliação tanto pela Anvisa, quanto pelos Ministérios da Saúde e Meio Ambiente. E espera-se que até o final do ano seja divulgada uma nova lista dos agrotóxicos que podem continuar sendo vendidos e os que serão banidos do território brasileiro.

Ainda não existe uma ação integrada desses organismos públicos responsáveis por essa tarefa de fiscalização, mas segundo Agenor Álvares, diretor da Anvisa, a integração é algo indispensável, até para enfrentar a proposta do setor ruralista, que é inaceitável.

Somália, o país mais perigoso do mundo

No Chifre da África, é possível compreender de forma brutal a lógica do imperialismo diante da tentativa dos movimentos islâmicos de construir um Estado-nação

Se quisermos compreender a lógica da geopolítica estadunidense no Oriente Médio e o sentido dos movimentos políticos islâmicos, devemos voltar nosso olhar para a Somália, um caso-limite que nos permite ver com clareza o que fica nebuloso ou ambíguo em circunstâncias menos dramáticas.

Entre os Estados-nação considerados “fracassados” no mundo, a Somália é o primeiro colocado, de acordo com a Peace Foundation e o Brookings Institute. É um país praticamente sem Estado, e, portanto, sem ordem pública, sem sistema judiciário, sem proteção social, sem nada. Seu povo combina a extrema pobreza à organização por clãs e à dominação por senhores da guerra. Além disso, a Somália fica na região Nordeste da África, que nos últimos anos ganhou as manchetes dos jornais ao se tornar foco de pirataria marítima.

Trata-se também de um território onde fica clara a lógica imperial dos Estados Unidos e o caráter nacionalista e moderno dos movimentos islâmicos, que buscam estabelecer a ordem em meio ao caos. Ao contrário do que afirma o saber convencional ocidental, estes últimos não se caracterizam principalmente por ser expressão do fundamentalismo religioso, mas como movimentos políticos voltados para a liberação nacional e a formação do Estado-nação. Eles usam a religião para enfrentar dois flagelos: a dominação externa e o atraso e desunião de sua própria sociedade. Para isso, procuram reproduzir o que os países desenvolvidos fizeram, construindo uma nação e formando um Estado que sirva de instrumento para conseguirem, além da ordem, os objetivos políticos das sociedades modernas: liberdade, bem-estar econômico, justiça social e proteção do ambiente.

Os Estados Unidos são o obstáculo fundamental à realização desta tarefa, intervindo nos países e se aliando aos setores mais atrasados e corruptos – que, no pior dos casos, são chefes-jagunços ou senhores de guerra. Ao invés de entenderem os movimentos islâmicos como de caráter político-nacionalistas, com os quais se pode discordar, mas se deve respeitar, os EUA os combatem. E para tanto, utilizam um argumento absurdo e persuasivo para com seus próprios cidadãos de que esses movimentos representam uma ameaça à segurança nacional americana.

O jornalista Jeffrey Genttleman, colaborador da revista Foreign Policy, já esteve doze vezes na Somália e considera este “o país mais perigoso do mundo”. “A Somália”, diz ele, “conheceu um breve período de paz com a chegada ao poder dos islâmicos, em 2006. Mas a partir do momento em que os americanos os expulsaram, o país enterrou-se novamente no horror”. Em sua última viagem para lá ele contratou dez homens armados para protegê-lo.

A Somália é um país de 10 milhões de habitantes. Ao contrário de muitos Estados africanos, é um país homogêneo do ponto de vista da língua (todos falam o somali) e religioso (todos são muçulmanos sunitas). Sua estrutura é de clãs, tradicional a todos os povos da região. A Somália foi dominada no final do século XIX pela Grã-Bretanha e pela Itália. Logrou independência em 1960. Desde 1969 até 1991 foi dirigida por um general, Mohammed Siyad Barré, que pretendia modernizar o país, mas não conseguia controlá-lo. Em 1991 ele foi derrubado pelos senhores de guerra e desde então, imperou o caos.

A Somália se situa em um ponto estratégico do continente, no chamado Chifre da África, dominando o Golfo de Aden e, juntamente com o Djibuti, a entrada para o Mar Vermelho. Aí está o interesse que desperta: afinal, trata-se de uma região em que os recursos petrolíferos continuam a determinar a geopolítica imperial. Em 1992, depois da Guerra do Golfo, e em um momento de auge da hegemonia estadunidense, o presidente George H. Bush (pai), a pretexto da desordem que reinava no país e no golfo, resolveu enviar milhares de marines para proteger os comboios de víveres. Os conselheiros do presidente, entretanto, a partir da constatação da divisão do país entre senhores de guerra rivais, subestimaram a capacidade de resistência nacional do povo somali. O resultado foi a “queda do falcão negro” – episódio militar relatado em filme de Ridley Scott no qual dois helicópteros Black Hawks foram derrubados em Mogadíscio e morreram 18 soldados americanos.

Humilhados, os americanos retiraram-se da Somália. No decênio que se segue, relata Jeffrey Genttleman, adeptos do islamismo sunita, com base principalmente na Arábia Saudita, voltaram sua atenção e seus esforços para lá. Construíram mesquitas, organizaram escolas corânicas, desenvolveram projetos de assistência social. O processo de renovação islâmica ganhou força em 2000, quando os anciãos dos clãs de Mogadíscio criaram uma rede informal de tribunais por bairros, a fim de estabelecer um mínimo de ordem na capital do país. Eles prenderam os acusados de assassinato e roubo, julgaram-nos e os colocaram na prisão, usando como lei a chária, ou seja, a lei islâmica que foi aceita por todos os clãs. É importante lembrar que o islã, diferentemente do cristianismo, é uma religião “legal”: o Corão é em boa parte constituído de preceitos legais. Os anciãos denominaram essa rede União dos Tribunais Islâmicos. Estavam, assim, construindo um Estado na Somália. O novo sistema conseguiu inclusive o apoio dos grandes (relativamente) empresários locais, que logravam mais segurança para seus negócios sem ter que pagar impostos. Como uma espécie de retribuição, eles resolveram contribuir para o Estado informal com a compra de armas.

Em 2005, a CIA (Agência Central de Inteligência americana), que vinha acompanhando os acontecimentos, decidiu intervir. O sistema islâmico em formação lhes pareceu um perigo. Embora não houvesse qualquer indício nesse sentido, a CIA entendeu que a Somália poderia ser um novo berço de jihad – de guerra santa – como havia acontecido com o Afeganistão. O governo dos EUA entrou em ação: não chegou a dizer que buscava a democracia; interveio em nome da ordem interna do país e da segurança nacional dos Estados Unidos. Escaldado, entretanto, pela experiência anterior, ao invés de enviar tropas, decidiu aliar-se e pagar os senhores de guerra. Ou seja, firmou laços com aqueles que eram os algozes da população há decênios. A primeira notícia que li a respeito foi em The Economist. A estratégia dos impérios de se aliar aos grupos dominantes conservadores dos países dominados é antiquíssima, e foi nos tempos modernos sempre uma norma por parte dos países ricos em relação àqueles em desenvolvimento. Mas dessa fez fiquei surpreso: parecia um passo além.

Jeffrey Genttleman conta em detalhes como isto aconteceu. Um senhor de guerra lhe disse que dois agentes da CIA chegaram a Mogadíscio um determinado dia de 2006 com malas cheias de dinheiro e disseram aos chefes-jagunços: “Usem esse montante para comprar armas. Se tiverem perguntas, enviem um e-mail para o endereço: no_email_today@yahoo.com”. A estratégia, porém, não funcionou. O regime estabelecido pelos anciãos islâmicos já havia se desenvolvido. Reinava ordem em Mogadíscio. Usando a bandeira da religião, os islâmicos haviam inclusive conseguido que boa parte da população entregasse suas armas. E conseguiram persuadir as cidades costeiras a não se dedicar à pirataria. Quando não eram ouvidos, eles tomavam de assalto os navios sequestrados. Tanto que, naquele ano, segundo a Agência Internacional Marítima de Londres, só houve 10 registros de incidentes desse tipo na região.

A reação à aliança dos Estados Unidos com os senhores de guerra foi o fortalecimento dos grupos islâmicos mais radicais, que buscaram impor uma lei mais rígida sobre a população, especialmente sobre as mulheres. Este fato reassegurou a CIA quanto ao acerto de sua estratégia de aliança com os senhores de guerra, e esta foi mantida. Havia, entretanto, ainda a possibilidade de neutralizar os grupos islâmicos mais radicais por meio de um acordo com os grupos não radicais que eram dominantes. Em setembro de 2006 o deputado democrata Ronald M. Payne, presidente da subcomissão da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos sobre a África, propôs que se procurasse aproveitar essa oportunidade, mas não foi ouvido. Ao invés disso, o governo americano optou por uma intervenção armada, convocando para isso as forças do país vizinho e tradicional inimigo – a Etiópia.

A Etiópia é um “bastião cristão” na “guerra das civilizações” criada pelos neoconservadores. Em acordo com a CIA, o governo da Etiópia assegurou que a Somália estava dominada por islâmicos terroristas e jihadistas, que se constituíam em uma ameaça para toda a região. Em dezembro de 2006, com o apoio e a participação de membros das forças especiais americanas, a Etiópia invadiu a Somália e, em uma semana, expulsou o governo islâmico praticamente desarmado de Mogadíscio. Para “extirpar” o movimento islâmico, os Estados Unidos responsabilizaram-se por ataques aéreos e com mísseis originados de seus navios de guerra.

Os islâmicos entraram na clandestinidade, mas, algumas semanas depois, retomaram a insurreição. E com força, apoiados pela população. O governo estabelecido era constituído de senhores de guerra. Rapidamente, perdeu o apoio dos clãs poderosos que poderiam ser seus aliados. No início de 2009, foi estabelecido um novo “governo de transição” – o décimo quarto governo desde 1991 – desta vez presidido por um jovem islâmico moderado. Mas esse governo está sendo gradualmente encurralado em um pequeno território em Mogadíscio. Os islâmicos – agora os mais radicais mas nem por isso terroristas – já controlam a terceira cidade do país, Baidoa, e ali estabeleceram a chária. Eles estão mais bem armados, e fortalecidos em seu intento de criar um Estado na Somália.

O uso da religião pelos movimentos nacionalistas para unir o povo em torno da bandeira nacional e modernizar o país é antigo. O primeiro povo que construiu uma nação, organizou um Estado, e afinal se firmou como Estado-nação moderno, industrializado, foi a Grã-Bretanha. Lembremos que nos albores da sua formação nacional, no século XVI, Henrique VIII estabeleceu para sua nação uma religião nacional, a Igreja Anglicana. Essa estratégia foi repetida por praticamente todos os movimentos nacionalistas que buscavam formar seu Estado. Quase sempre tiveram que usar da violência para derrotar os poderosos regionais e para conseguir a libertação. Mas essa violência não justificava que fossem chamados de fundamentalistas ou de terroristas; nem que se falasse em guerra de civilizações. Porque não estavam fazendo outra coisa senão seguir a regra política fundamental do desenvolvimento capitalista ou da modernização: cada povo busca se constituir como nação, assenhorear-se de um território e nele estabelecer um Estado moderno, formando, assim, um país soberano.

Esta tarefa foi feita inicialmente pelos povos dos países hoje ricos. Mas vem sendo copiada pelos demais Estados em desenvolvimento, que, entretanto, enfrentam uma dificuldade maior, porque agora contam com a oposição dos países ricos cujos interesses estão associados à manutenção do atraso. Em certos casos, porém, como é o caso da Somália, essa oposição se transforma em hostilidade devido a considerações de segurança nacional das grandes potências, a meu ver equivocadas. Na era da globalização, o controle imperial de fontes de matéria-prima faz pouco sentido, e confundir movimentos nacionalistas com terrorismo antiamericano do tipo representado pelo pan-arabismo da Al Qaeda, menos ainda.

Os povos muçulmanos que vivem nessa região não utilizaram inicialmente a religião como forma de união nacional. Pelo contrário, o primeiro grande líder nacionalista muçulmano a liderar uma revolução nacional em seu país, Mustafá Kemal Ataturk, estabeleceu um modelo de revolução secularista na Turquia nos anos 1920. O êxito dessa experiência levou à sua reprodução em muitos países. Gamal Abdel Nasser, no Egito dos anos 1950, foi provavelmente a experiência mais interessante nesse sentido, mas houve muitas outras, algumas cedo esmagadas pelas potências imperiais, como foi o caso de Mohammed Mossadegh, no Irã, quando, nos anos 1950, que nacionalizou a produção de petróleo. Outras se mostraram mais duradouras, mas igualmente fracassadas, como a do partido bahatista no Iraque, ou que sobrevivem com dificuldade, como o regime também bahatista na Síria e o regime militar na Argélia. Assim, ainda que por diversas razões, a estratégia secularista afinal fracassou.

Por isso, quando, no final dos anos 1970, um movimento islâmico no Irã derrubou o governo corrupto e desmoralizado do xá que ali havia sido posto pelas potencias ocidentais, estava sendo definido um outro modelo de revolução nacional no qual a religião era usada para garantir a coesão. Como os novos governantes adotavam convicções e práticas religiosas radicais, foram identificados como fundamentalistas – e de fato o eram – mas o que o Ocidente se recusou a compreender foi que essa não era e não é a característica principal dos movimentos islâmicos modernos. Estes não são movimentos religiosos, mas políticos.