quarta-feira, 21 de abril de 2010

Alimentos contaminados

O Brasil é o maior mercado de agrotóxicos do mundo e representa 16% da sua venda mundial. Em 2009, foram vendidas aqui 780 mil toneladas, com um faturamento estimado da ordem de 8 bilhões de dólares. Ao longo dos últimos 10 anos, na esteira do crescimento do agronegócio, esse mercado cresceu 176%, quase quatro vezes mais que a média mundial, e as importações brasileiras desses produtos aumentaram 236% entre 2000 e 2007. As 10 maiores empresas do setor de agrotóxicos do mundo concentram mais de 80% das vendas no país.

Esses produtores viram ameaçadas suas novas metas de faturamento com o anúncio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de que se propõe a reavaliar o uso de 13 produtos agrotóxicos, vários deles já proibidos há anos nos EUA, na União Europeia, e em países como Argentina, Nigéria, Senegal, Mauritânia, entre outros, como o acefato e o endossulfam. Os motivos dessa proibição são evidentes, a contaminação de alimentos, de trabalhadores rurais, e do meio ambiente, causando, literalmente, o envenenamento dos consumidores, a morte de trabalhadores rurais e a destruição da vida animal e vegetal.

Em solicitação ao Ministério Público para a proibição de um desses agrotóxicos – o Tamaron – os então deputados federais Fernando Dantas Ferro, Adão Preto e Miguel Rosseto denunciam que 5 mil trabalhadores rurais morrem, a cada ano, intoxicados por venenos agrícolas, sendo que muitos mais são afetados de maneira grave pela ingestão dos componentes químicos desses produtos.

Frente à disposição da Anvisa de reavaliar produtos como Gramoxone, Paraquat, Tamaron, Mancozeb, Monocrotfos, Folidol, Malation e Decis, o Sindag – Sindicato das Indústrias de Defensivos Agrícolas – recorreu ao Judiciário, solicitando que não sejam publicados os resultados das reavaliações. Houve mesmo iniciativas no Judiciário que pretendiam proibir os estudos da Anvisa que verificavam a segurança das substâncias de 99 agrotóxicos.

O fato é que o setor ruralista, com o Ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes à frente, a bancada ruralista e os fabricantes de agrotóxicos se puseram a campo contra a iniciativa da Anvisa, e mesmo contra a própria Anvisa e o seu papel fiscalizador. Segundo documento obtido pela ABRANDH – Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos, o Ministério da Agricultura quer ser o responsável pela avaliação e registro dos produtos agrotóxicos.

Para Rosany Bochner, especialista em toxicologia da Fiocruz, instituição parceira da Anvisa no trabalho de reavaliação dos agrotóxicos, “o Brasil está virando um grande depósito de porcarias. Os agrotóxicos que as empresas não conseguem vender lá fora, que têm indicativo de problemas, são empurrados para a gente”.1

Em 2002, com o início do funcionamento do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, coordenado pela Anvisa, surgiram informações preocupantes. Das 1.198 amostras recolhidas em nível nacional, 17,28% apresentavam índices de contaminação acima do permitido para se preservar a saúde. O tomate, o morango e a alface são os mais contaminados. Se você come amendoim, batata, brócolis, citros, couve, couve-flor, feijão, melão, pimentão, repolho, entre outros alimentos, cuidado! Eles contêm acefato, um agrotóxico que pode causar danos ao cérebro e ao sistema nervoso e provocar câncer no longo prazo. O acefato é proibido em toda a União Europeia.

Segundo o IDEC – Instituto de Defesa do Consumidor, “o consumidor brasileiro está exposto a um risco sanitário inaceitável, que exige medidas rigorosas dos órgãos governamentais responsáveis, inclusive com a punição dos infratores”.

Essa denúncia decorre do levantamento e análise da Anvisa, feito de junho de 2001 a junho de 2002, onde nada menos que 81,2% das amostras analisadas (1051 casos) exibiam resíduos de agrotóxicos e 22,17% apresentavam índices que ultrapassavam os limites máximos permitidos.

Atualmente os agrotóxicos estão em reavaliação tanto pela Anvisa, quanto pelos Ministérios da Saúde e Meio Ambiente. E espera-se que até o final do ano seja divulgada uma nova lista dos agrotóxicos que podem continuar sendo vendidos e os que serão banidos do território brasileiro.

Ainda não existe uma ação integrada desses organismos públicos responsáveis por essa tarefa de fiscalização, mas segundo Agenor Álvares, diretor da Anvisa, a integração é algo indispensável, até para enfrentar a proposta do setor ruralista, que é inaceitável.

Somália, o país mais perigoso do mundo

No Chifre da África, é possível compreender de forma brutal a lógica do imperialismo diante da tentativa dos movimentos islâmicos de construir um Estado-nação

Se quisermos compreender a lógica da geopolítica estadunidense no Oriente Médio e o sentido dos movimentos políticos islâmicos, devemos voltar nosso olhar para a Somália, um caso-limite que nos permite ver com clareza o que fica nebuloso ou ambíguo em circunstâncias menos dramáticas.

Entre os Estados-nação considerados “fracassados” no mundo, a Somália é o primeiro colocado, de acordo com a Peace Foundation e o Brookings Institute. É um país praticamente sem Estado, e, portanto, sem ordem pública, sem sistema judiciário, sem proteção social, sem nada. Seu povo combina a extrema pobreza à organização por clãs e à dominação por senhores da guerra. Além disso, a Somália fica na região Nordeste da África, que nos últimos anos ganhou as manchetes dos jornais ao se tornar foco de pirataria marítima.

Trata-se também de um território onde fica clara a lógica imperial dos Estados Unidos e o caráter nacionalista e moderno dos movimentos islâmicos, que buscam estabelecer a ordem em meio ao caos. Ao contrário do que afirma o saber convencional ocidental, estes últimos não se caracterizam principalmente por ser expressão do fundamentalismo religioso, mas como movimentos políticos voltados para a liberação nacional e a formação do Estado-nação. Eles usam a religião para enfrentar dois flagelos: a dominação externa e o atraso e desunião de sua própria sociedade. Para isso, procuram reproduzir o que os países desenvolvidos fizeram, construindo uma nação e formando um Estado que sirva de instrumento para conseguirem, além da ordem, os objetivos políticos das sociedades modernas: liberdade, bem-estar econômico, justiça social e proteção do ambiente.

Os Estados Unidos são o obstáculo fundamental à realização desta tarefa, intervindo nos países e se aliando aos setores mais atrasados e corruptos – que, no pior dos casos, são chefes-jagunços ou senhores de guerra. Ao invés de entenderem os movimentos islâmicos como de caráter político-nacionalistas, com os quais se pode discordar, mas se deve respeitar, os EUA os combatem. E para tanto, utilizam um argumento absurdo e persuasivo para com seus próprios cidadãos de que esses movimentos representam uma ameaça à segurança nacional americana.

O jornalista Jeffrey Genttleman, colaborador da revista Foreign Policy, já esteve doze vezes na Somália e considera este “o país mais perigoso do mundo”. “A Somália”, diz ele, “conheceu um breve período de paz com a chegada ao poder dos islâmicos, em 2006. Mas a partir do momento em que os americanos os expulsaram, o país enterrou-se novamente no horror”. Em sua última viagem para lá ele contratou dez homens armados para protegê-lo.

A Somália é um país de 10 milhões de habitantes. Ao contrário de muitos Estados africanos, é um país homogêneo do ponto de vista da língua (todos falam o somali) e religioso (todos são muçulmanos sunitas). Sua estrutura é de clãs, tradicional a todos os povos da região. A Somália foi dominada no final do século XIX pela Grã-Bretanha e pela Itália. Logrou independência em 1960. Desde 1969 até 1991 foi dirigida por um general, Mohammed Siyad Barré, que pretendia modernizar o país, mas não conseguia controlá-lo. Em 1991 ele foi derrubado pelos senhores de guerra e desde então, imperou o caos.

A Somália se situa em um ponto estratégico do continente, no chamado Chifre da África, dominando o Golfo de Aden e, juntamente com o Djibuti, a entrada para o Mar Vermelho. Aí está o interesse que desperta: afinal, trata-se de uma região em que os recursos petrolíferos continuam a determinar a geopolítica imperial. Em 1992, depois da Guerra do Golfo, e em um momento de auge da hegemonia estadunidense, o presidente George H. Bush (pai), a pretexto da desordem que reinava no país e no golfo, resolveu enviar milhares de marines para proteger os comboios de víveres. Os conselheiros do presidente, entretanto, a partir da constatação da divisão do país entre senhores de guerra rivais, subestimaram a capacidade de resistência nacional do povo somali. O resultado foi a “queda do falcão negro” – episódio militar relatado em filme de Ridley Scott no qual dois helicópteros Black Hawks foram derrubados em Mogadíscio e morreram 18 soldados americanos.

Humilhados, os americanos retiraram-se da Somália. No decênio que se segue, relata Jeffrey Genttleman, adeptos do islamismo sunita, com base principalmente na Arábia Saudita, voltaram sua atenção e seus esforços para lá. Construíram mesquitas, organizaram escolas corânicas, desenvolveram projetos de assistência social. O processo de renovação islâmica ganhou força em 2000, quando os anciãos dos clãs de Mogadíscio criaram uma rede informal de tribunais por bairros, a fim de estabelecer um mínimo de ordem na capital do país. Eles prenderam os acusados de assassinato e roubo, julgaram-nos e os colocaram na prisão, usando como lei a chária, ou seja, a lei islâmica que foi aceita por todos os clãs. É importante lembrar que o islã, diferentemente do cristianismo, é uma religião “legal”: o Corão é em boa parte constituído de preceitos legais. Os anciãos denominaram essa rede União dos Tribunais Islâmicos. Estavam, assim, construindo um Estado na Somália. O novo sistema conseguiu inclusive o apoio dos grandes (relativamente) empresários locais, que logravam mais segurança para seus negócios sem ter que pagar impostos. Como uma espécie de retribuição, eles resolveram contribuir para o Estado informal com a compra de armas.

Em 2005, a CIA (Agência Central de Inteligência americana), que vinha acompanhando os acontecimentos, decidiu intervir. O sistema islâmico em formação lhes pareceu um perigo. Embora não houvesse qualquer indício nesse sentido, a CIA entendeu que a Somália poderia ser um novo berço de jihad – de guerra santa – como havia acontecido com o Afeganistão. O governo dos EUA entrou em ação: não chegou a dizer que buscava a democracia; interveio em nome da ordem interna do país e da segurança nacional dos Estados Unidos. Escaldado, entretanto, pela experiência anterior, ao invés de enviar tropas, decidiu aliar-se e pagar os senhores de guerra. Ou seja, firmou laços com aqueles que eram os algozes da população há decênios. A primeira notícia que li a respeito foi em The Economist. A estratégia dos impérios de se aliar aos grupos dominantes conservadores dos países dominados é antiquíssima, e foi nos tempos modernos sempre uma norma por parte dos países ricos em relação àqueles em desenvolvimento. Mas dessa fez fiquei surpreso: parecia um passo além.

Jeffrey Genttleman conta em detalhes como isto aconteceu. Um senhor de guerra lhe disse que dois agentes da CIA chegaram a Mogadíscio um determinado dia de 2006 com malas cheias de dinheiro e disseram aos chefes-jagunços: “Usem esse montante para comprar armas. Se tiverem perguntas, enviem um e-mail para o endereço: no_email_today@yahoo.com”. A estratégia, porém, não funcionou. O regime estabelecido pelos anciãos islâmicos já havia se desenvolvido. Reinava ordem em Mogadíscio. Usando a bandeira da religião, os islâmicos haviam inclusive conseguido que boa parte da população entregasse suas armas. E conseguiram persuadir as cidades costeiras a não se dedicar à pirataria. Quando não eram ouvidos, eles tomavam de assalto os navios sequestrados. Tanto que, naquele ano, segundo a Agência Internacional Marítima de Londres, só houve 10 registros de incidentes desse tipo na região.

A reação à aliança dos Estados Unidos com os senhores de guerra foi o fortalecimento dos grupos islâmicos mais radicais, que buscaram impor uma lei mais rígida sobre a população, especialmente sobre as mulheres. Este fato reassegurou a CIA quanto ao acerto de sua estratégia de aliança com os senhores de guerra, e esta foi mantida. Havia, entretanto, ainda a possibilidade de neutralizar os grupos islâmicos mais radicais por meio de um acordo com os grupos não radicais que eram dominantes. Em setembro de 2006 o deputado democrata Ronald M. Payne, presidente da subcomissão da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos sobre a África, propôs que se procurasse aproveitar essa oportunidade, mas não foi ouvido. Ao invés disso, o governo americano optou por uma intervenção armada, convocando para isso as forças do país vizinho e tradicional inimigo – a Etiópia.

A Etiópia é um “bastião cristão” na “guerra das civilizações” criada pelos neoconservadores. Em acordo com a CIA, o governo da Etiópia assegurou que a Somália estava dominada por islâmicos terroristas e jihadistas, que se constituíam em uma ameaça para toda a região. Em dezembro de 2006, com o apoio e a participação de membros das forças especiais americanas, a Etiópia invadiu a Somália e, em uma semana, expulsou o governo islâmico praticamente desarmado de Mogadíscio. Para “extirpar” o movimento islâmico, os Estados Unidos responsabilizaram-se por ataques aéreos e com mísseis originados de seus navios de guerra.

Os islâmicos entraram na clandestinidade, mas, algumas semanas depois, retomaram a insurreição. E com força, apoiados pela população. O governo estabelecido era constituído de senhores de guerra. Rapidamente, perdeu o apoio dos clãs poderosos que poderiam ser seus aliados. No início de 2009, foi estabelecido um novo “governo de transição” – o décimo quarto governo desde 1991 – desta vez presidido por um jovem islâmico moderado. Mas esse governo está sendo gradualmente encurralado em um pequeno território em Mogadíscio. Os islâmicos – agora os mais radicais mas nem por isso terroristas – já controlam a terceira cidade do país, Baidoa, e ali estabeleceram a chária. Eles estão mais bem armados, e fortalecidos em seu intento de criar um Estado na Somália.

O uso da religião pelos movimentos nacionalistas para unir o povo em torno da bandeira nacional e modernizar o país é antigo. O primeiro povo que construiu uma nação, organizou um Estado, e afinal se firmou como Estado-nação moderno, industrializado, foi a Grã-Bretanha. Lembremos que nos albores da sua formação nacional, no século XVI, Henrique VIII estabeleceu para sua nação uma religião nacional, a Igreja Anglicana. Essa estratégia foi repetida por praticamente todos os movimentos nacionalistas que buscavam formar seu Estado. Quase sempre tiveram que usar da violência para derrotar os poderosos regionais e para conseguir a libertação. Mas essa violência não justificava que fossem chamados de fundamentalistas ou de terroristas; nem que se falasse em guerra de civilizações. Porque não estavam fazendo outra coisa senão seguir a regra política fundamental do desenvolvimento capitalista ou da modernização: cada povo busca se constituir como nação, assenhorear-se de um território e nele estabelecer um Estado moderno, formando, assim, um país soberano.

Esta tarefa foi feita inicialmente pelos povos dos países hoje ricos. Mas vem sendo copiada pelos demais Estados em desenvolvimento, que, entretanto, enfrentam uma dificuldade maior, porque agora contam com a oposição dos países ricos cujos interesses estão associados à manutenção do atraso. Em certos casos, porém, como é o caso da Somália, essa oposição se transforma em hostilidade devido a considerações de segurança nacional das grandes potências, a meu ver equivocadas. Na era da globalização, o controle imperial de fontes de matéria-prima faz pouco sentido, e confundir movimentos nacionalistas com terrorismo antiamericano do tipo representado pelo pan-arabismo da Al Qaeda, menos ainda.

Os povos muçulmanos que vivem nessa região não utilizaram inicialmente a religião como forma de união nacional. Pelo contrário, o primeiro grande líder nacionalista muçulmano a liderar uma revolução nacional em seu país, Mustafá Kemal Ataturk, estabeleceu um modelo de revolução secularista na Turquia nos anos 1920. O êxito dessa experiência levou à sua reprodução em muitos países. Gamal Abdel Nasser, no Egito dos anos 1950, foi provavelmente a experiência mais interessante nesse sentido, mas houve muitas outras, algumas cedo esmagadas pelas potências imperiais, como foi o caso de Mohammed Mossadegh, no Irã, quando, nos anos 1950, que nacionalizou a produção de petróleo. Outras se mostraram mais duradouras, mas igualmente fracassadas, como a do partido bahatista no Iraque, ou que sobrevivem com dificuldade, como o regime também bahatista na Síria e o regime militar na Argélia. Assim, ainda que por diversas razões, a estratégia secularista afinal fracassou.

Por isso, quando, no final dos anos 1970, um movimento islâmico no Irã derrubou o governo corrupto e desmoralizado do xá que ali havia sido posto pelas potencias ocidentais, estava sendo definido um outro modelo de revolução nacional no qual a religião era usada para garantir a coesão. Como os novos governantes adotavam convicções e práticas religiosas radicais, foram identificados como fundamentalistas – e de fato o eram – mas o que o Ocidente se recusou a compreender foi que essa não era e não é a característica principal dos movimentos islâmicos modernos. Estes não são movimentos religiosos, mas políticos.

Chuvas: é preciso mudar a postura

A enchente que assola o Rio de Janeiro traz de volta uma antiga discussão: como conviver de forma diferente com esse fenômeno natural?

As epidemias que assolaram o Brasil nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX influenciaram a abordagem técnica sobre o manejo das águas e, indiretamente, reforçaram na população o temor pelas várzeas, mangues e diversos tipos de terrenos úmidos e águas paradas, genericamente considerados indutores de algumas doenças epidêmicas.

Em algumas cidades, parcelas expressivas da população pereceram com as doenças, como no caso de Fortaleza, que perdeu cerca de 20% dos habitantes com uma epidemia de varíola.

Em 1895, dos 340 tripulantes do navio italiano Lombardia, que atracou no Rio de Janeiro, 333 foram atingidos pela febre amarela e 234 morreram1. Em 1919, o presidente Rodrigues Alves, que deflagrou diversas iniciativas de caráter higienista e já havia perdido um filho para a febre amarela, morreu de gripe espanhola.

O temor das epidemias e sua associação com as águas paradas fizeram com que se difundisse no meio técnico e entre a população uma expectativa de afastar rapidamente as águas das chuvas. Esse temor impulsionou os paradigmas das obras de urbanização, de ocupação dos lotes urbanos e, especificamente, da implantação de obras hidráulicas, que influenciam os problemas de enchentes que hoje observamos.

As obras de engenharia focaram-se no esforço de impermeabilizar e drenar. Por meio de tubos, canais, calhas, canaletas e sarjetas, esses empreendimentos visavam livrar-se rapidamente das águas de chuva precipitadas.

Pode-se avaliar a insustentabilidade desse modelo quando um único lote impermeabilizado, de 300 m2, gera por ocasião de uma precipitação de 60 mm um montante de 18 mil litros de água, em um período que algumas vezes não ultrapassa uma hora. Como referência, uma residência gera cerca de 500 litros de esgotos, em um período de 24 horas. A vazão das águas de chuva tende a ser centenas de vezes maior do que a das águas servidas.

Já nas últimas décadas do século XX, ampliou-se o debate sobre novos conceitos de manejo das águas, o que pressupõe outro posicionamento e que busca-se reter, guardar, acumular e infiltrar as águas de chuva que são contidas na fonte antes da chegada aos corpos d’água e canais de drenagem.

Embora esses conceitos se choquem com a cultura e as orientações técnicas predominantes anteriormente, sua implementação não é complexa. Complexa é a mudança de posicionamento de técnicos formados com outra visão, assim como da população que cresceu entendendo a água parada ou retida como inimiga, e mesmo dos políticos, tão habituados aos dividendos eleitorais das grandes obras.

As imagens recentes dos problemas ocorridos nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul mesclam-se com outras, igualmente graves, mostradas em anos anteriores: vidas perdidas, pessoas ilhadas, automóveis boiando, bens destruídos e barcos navegando em ruas vão se tornando uma triste rotina no noticiário de tragédias vivenciadas pelos cidadãos.

Todos sabem que nos próximos anos as chuvas retornarão, talvez ainda mais fortes, e a culpa não é da natureza. O processo se repete também fora do país e as imagens da cidade de Nova Orleans, nos Estados Unidos, ou do estado de Queensland, na Austrália, nos lembram que, mesmo nos países ricos, o problema se manifesta de forma agressiva e que é limitado o alcance das obras hidráulicas frente aos processos naturais, ainda mais no atual contexto de mudanças climáticas. As obras são fundamentais, mas em muitos casos não são suficientes.

Frequentemente são apresentadas possíveis iniciativas para reduzir ou prevenir o problema: manutenção e limpeza dos sistemas de drenagem, redução das áreas impermeabilizadas, prevenção e remediação dos processos de erosão e assoreamento, construção de depósitos de retenção das águas da chuva para redução dos impactos das cheias, entre outras.

Nos meios técnicos debatem-se e divulgam-se medidas para reter e infiltrar as águas da chuva em locais próximos a sua precipitação, com o fim de evitar as grandes obras hidráulicas caras e muitas vezes impactantes sob a ótica ambiental.

Há muitos séculos o homem é afetado ou beneficiado pelas inundações. A civilização egípcia, que floresceu no vale do Nilo, se valeu dos excedentes alimentares propiciados pelos férteis terrenos da várzea desse rio, para onde eram carreados os nutrientes no período em que as águas inundavam os campos de plantio.

A infiltração das águas no solo e sua lenta devolução à superfície nos olhos d’água, nascentes, minas etc. é o processo que viabiliza a existência dos próprios rios mesmo quando não chove em toda a área de sua influência, definida pela bacia hidrográfica. Dessa forma, a obtenção de água nos períodos de estiagem e a sobrevivência do homem primitivo foram muito beneficiadas por esse processo natural que, em outras medidas, ainda influencia nossas vidas.

A importância da existência de áreas cobertas de vegetação e de terrenos permeáveis compara-se à importância das várzeas, não só na proteção da fauna e da flora, mas também como reservatório natural do excesso de chuvas que ali ficam retidas e que são gradativamente devolvidas ao leito menor do rio após os picos de vazão dos corpos d’água. As várzeas cumprem um papel de esponja, retendo as águas nos momentos de chuvas intensas e devolvendo-as no período de estiagem. Mas, com o crescimento dos aglomerados humanos temos hoje duas situações distintas.

A primeira são as bacias pouco afetadas pelos processos de urbanização. Neste grupo estão as cidades, ou parcelas de cidades, situadas em bacias hidrográficas relativamente pouco afetadas pelos processos de urbanização, construídas em terrenos úmidos historicamente afetados pelas inundações naturais, tais como várzeas e mangues.

É o caso de diversos municípios situados na Amazônia e de alguns à beira-mar ou nas várzeas de rios. Pode-se dizer que são cidades em que parte da urbanização se efetivou em terrenos tomados ao rio ou ao mar, formados pelos solos que a água transportou e depositou e que, mantido o processo natural, tenderia a seguir transportando e depositando.

Mesmo que as obras hidráulicas tenham sido dimensionadas para viabilizar tecnicamente a ocupação, convive-se agora com duas importantes alterações de cenário: uma associada a fenômenos climáticos excepcionais e outra às alterações de uso do solo nas áreas rurais, que podem ampliar os problemas de escorregamentos, erosão e assoreamento, reduzir a capacidade de escoamento dos cursos d’água e canais de drenagem e, assim, agravar os riscos de enchentes.

Assim, as condições das bacias pouco afetadas pelos processos de urbanização diferem daquelas encontradas nos grandes aglomerados populacionais, em regiões conurbadas, onde o histórico de obras realizadas para prevenir as enchentes afeta radicalmente as vazões dos cursos d’água e provoca efeitos cumulativos cada vez mais graves, cada vez mais exigentes em termos de obras civis.

A segunda que existe hoje é a dos grandes aglomerados urbanos, onde usualmente tem-se um processo de urbanização com impermeabilização radical. Nesses casos as variações de vazão dos cursos d’água são também radicais: elevadíssimas nos períodos de chuva e praticamente nulas durante os meses de seca.

Algumas cidades encontram-se em uma situação dramática, em que a vazão de base de alguns cursos d’água, nos períodos de estiagem, é praticamente constituída pelos esgotos ali lançados.

Novos paradigmas

As duas situações anteriormente descritas diferem com relação ao impacto das obras hidráulicas. No primeiro caso, de bacias hidrográficas pouco urbanizadas em que as obras foram realizadas para viabilizar a ocupação de terrenos tomados à água, as mesmas podem não mais se mostrar adequadas ou suficientes às novas dinâmicas das águas. São casos em que existe o impacto ambiental da obra que foi implantada, mas seu efeito indutor de novas enchentes em áreas próximas não é necessariamente relevante.

Na segunda situação, de grandes aglomerações, cada nova obra de retificação, canalização ou drenagem para rápido afastamento das águas da chuva, agrava o problema das enchentes e torna mais complexa a solução do problema.

Em ambos os casos, seria muito importante uma mudança de postura com relação ao convívio com a água da chuva e à adoção de uma política de preservação das áreas úmidas existentes, de construção de pequenos mecanismos de retenção das águas e de infiltração no próprio terreno ou nas suas proximidades.

Nas grandes aglomerações urbanas essa nova postura é fundamental para a prevenção das enchentes, pois as obras hidráulicas tradicionais de drenagem não serão suficientes para resolver o problema. Pelo contrário, podem até agravá-lo.

O desafio colocado é que essa mudança de postura demanda um novo posicionamento dos técnicos, o compromisso dos políticos e um engajamento da população, todos processos relativamente lentos.

A água da chuva, tida como vilã nos grandes aglomerados populacionais poderia ser a solução para diversos problemas, entre eles o de fornecimento de água potável.

A questão de abastecimento de água se atrela, em muitos aspectos, ao manejo das águas pluviais. Valorizamos os esforços de utilização das águas da própria bacia hidrográfica e, sempre que possível, da utilização das águas que são geradas pelo processo de impermeabilização associado à ocupação do território.

Usualmente cita-se a região metropolitana de São Paulo como exemplo da dificuldade de obtenção de água em grandes cidades situadas na parte mais alta de uma bacia hidrográfica, onde são limitados os volumes dos recursos hídricos existentes. Essa dificuldade tornaria inexorável a importação de água de outras bacias. Mas pode-se introduzir alguns novos elementos a esse debate.

No município de São Paulo tem-se uma precipitação média anual de 1530 mm2. Em uma localidade com essa precipitação, uma superfície impermeabilizada de 36 m2 permite captar água correspondente a 151 litros por dia, que é a média de consumo per capta diária nacional. Ou seja, se fosse possível captar água de chuva com qualidade aceitável, a área impermeabilizada da cidade seria suficiente para abastecer seus habitantes.

Mas não é tão simples captar água de chuva com qualidade aceitável em um ambiente fortemente poluído. Quando escorre por superfícies impermeabilizadas, a água de chuva carrega poluentes e contaminantes. Mesmo aquela captada diretamente do céu apresenta problemas de qualidade em uma localidade com grande poluição do ar.

No futuro, haverá dificuldades crescentes na obtenção de água potável nas grandes cidades. Espera-se que, gradativamente, consiga-se reduzir a poluição do ar e melhorar a limpeza urbana de forma a permitir sistemas de abastecimento de água a partir da utilização dos nossos próprios recursos hídricos. Isso viabilizaria a solução do problema de água potável e também das enchentes.

Uma ocupação mais racional e mais densa das regiões servidas por infra-estrutura urbana, como a reversão do processo de esvaziamento das áreas centrais da metrópole, poderia aliviar um pouco a enorme pressão populacional de assentamentos informais sobre as áreas de mananciais e de preservação ambiental nos cinturões das metrópoles brasileiras.

Os casos de pressão de ocupação nas proximidades dos reservatórios Billings e Guarapiranga e junto à Serra da Cantareira, na região metropolitana de São Paulo, são paradigmáticos desses fenômenos.

Ao tratarmos da questão da poluição, entra em cena o automóvel e o modelo de transporte motorizado individual. Pode-se dizer que o século XX foi o século do automóvel, símbolo mais vigoroso e desejado da sociedade moderna. Nenhum outro bem simbolizou tanto o fetiche de consumo nesse período. Ideal de conforto e status, indutor de dinâmicas de vitalidade econômica, os carros são também fonte de poluição, de ruído, de estresse e elemento estruturador de parte da escravidão no modo de vida moderno.

O automóvel interfere como fator que dificulta seriamente o aproveitamento das águas de chuva. Altera também a impermeabilização do solo, necessária para sua circulação e estacionamento. Para que se possa avaliar disso, tomemos como exemplo as garagens: nos projetos de habitação popular, elas ocupam áreas que chegam a ser 40% maiores do que aquelas reservadas às edificações.

A análise dos projetos de um campus universitário e de um grande centro de compras no município de Campinas constatou que as áreas de estacionamento respondem, respectivamente, por 26% e 60% das áreas impermeabilizadas, em ambos os casos ultrapassando significativamente aquelas das projeções das edificações.

Se os estacionamentos são os grandes responsáveis pela impermeabilização, eles constituem hoje uma das mais promissoras possibilidades para ampliar as áreas permeáveis das cidades. É confortável estacionar debaixo de árvores e existem várias alternativas técnicas de pisos permeáveis nos locais em que os veículos são estacionados.

Aqui novamente é necessário enfrentar resistências, pois ainda não se conseguiu que o “estacionamento-parque” seja visto como uma boa alternativa. Ele esbarra no arraigado anseio de circular e estacionar em terrenos asfaltados e drenados.

A prevenção, a redução ou a eliminação dos problemas de enchentes demandam obras hidráulicas difíceis e muitas vezes caras. Mais que isso, porém, exige mudanças na forma de uso do solo, na gestão das águas, no modelo de transporte.

Essas mudanças culturais demandam tempo e um espaço mais abrangente de debates nos meios de comunicação. Em especial a solução dos problemas de enchentes através do aproveitamento das águas de chuva como fonte de água potável no próprio local em que ocorreu a precipitação pluviométrica. É uma questão de tecnologia, de opção de investimentos e, principalmente, de avanço na redução da poluição.