segunda-feira, 15 de novembro de 2010

G20, o espetáculo da soberania

Aquilo que o ministro Guido Mantega define como guerra cambial é a paisagem superficial da longa crise do sistema de Bretton Woods. O desequilíbrio entre os superávits chineses e os déficits americanos forma o relevo destacado nessa paisagem, mas não a esgota nem a explica. A crise de fundo tem uma dimensão econômica mas uma raiz geopolítica. No fim das contas, as engrenagens institucionais da ordem econômica global parecem emperradas, pela primeira vez desde o pós-guerra. O G20, palco da estreia de Dilma Rousseff na cena internacional, não é a ferramenta milagrosa de solução da crise. Antes, figura como uma expressão singular do impasse evidenciado desde a quebra do Lehman Brothers.
Na sua versão original, o edifício de Bretton Woods praticamente excluía a necessidade de interferência política no sistema monetário. O dólar refletia o ouro, que lhe servia de lastro nominal, e uma coleção de moedas orbitava em torno do dólar segundo um mecanismo de paridades quase fixas. As fundações do edifício estavam assentadas na rocha da escassez de dólares, num tempo em que os EUA eram os credores do mundo. O arranjo promoveu as três décadas gloriosas de crescimento acelerado das economias de mercado. Voluntariamente, para salvar o capitalismo, os EUA ajudaram a criar centros independentes de poder econômico, sacrificando no caminho a posição de hegemonia absoluta adquirida durante a guerra.
Quando a escassez de dólares desapareceu, premido pelo financiamento da Guerra do Vietnã, Richard Nixon levantou a âncora da paridade com o ouro. Bretton Woods 2 não emanou de uma conferência, mas de um gesto unilateral do gerente do sistema: a retomada da prerrogativa soberana de imprimir moeda. No novo ambiente de flutuação cambial, a interferência política dos principais atores tornou-se um imperativo. O G5 e o G7, seu sucessor, nasceram como respostas à necessidade de tecer consensos em torno da governança econômica global. Eles operaram como um clube seleto, que compartilhava uma visão de mundo similar e tomava decisões informais em reuniões fechadas, protegidas do assédio da imprensa.
Desde 1971, os EUA agem de olho nas suas prioridades nacionais, dividindo com o resto do sistema internacional o custo das políticas domésticas. A desvalorização de Nixon difundiu para o mundo as pressões inflacionárias geradas no interior da economia americana. Dez anos depois, a “revolução econômica” de Ronald Reagan provocou a elevação dos juros globais, o desvio da liquidez mundial na direção de Wall Street e uma forte apreciação do dólar. Poucos anos mais tarde, tornou-se inadiável uma brusca correção de rumo, com a depreciação do dólar frente ao marco e ao yen, algo que demandava a aquiescência da Alemanha e do Japão. Washington obteve o que desejava no Acordo do Plaza de 1985, uma prova indiscutível da eficácia política do clube das potências.
Há dois anos, os EUA buscam uma reedição do Acordo do Plaza, sob a forma de um pacto de limitação de superávits ao máximo de 4% dos PIBs nacionais, o que implicaria forte apreciação do renminbi chinês. A proposta faz sentido, mas não decola, pela conjunção de dois motivos. Um: a China não admite reproduzir a função desempenhada pelo Japão há um quarto de século. Dois: o G20 não é um G7 ampliado.
Os chineses temem repetir a trajetória do Japão depois do Plaza, quando o influxo de capitais coagulou-se em bolhas especulativas nos mercados de imóveis e ações, que explodiram na crise financeira de 1990 e redundaram numa estagnação de quase dez anos. O consenso interno em torno do renminbi depreciado estende-se do núcleo dirigente do Partido Comunista, que resiste a conferir direitos econômicos à população, até as empresas transnacionais estabelecidas no país, que funcionam como plataformas de exportações.
O G20, consolidado após a quebra do Lehman Brothers, reflete o declínio relativo dos EUA e a multiplicação dos centros de poder econômico gerados pela globalização. Ele não é um clube, mas um fórum. Seus integrantes, especialmente a China, não compartilham a visão de mundo que moldou o sistema de Bretton Woods. Suas reuniões, escancaradas ao escrutínio público, são teatros do espetáculo da soberania. Hoje, em Seul, chineses, alemães, brasileiros e sul-africanos erguerão suas vozes para acusar os EUA. Todos eles estarão de olhos postos nas manchetes dos telejornais e das publicações impressas.
A decisão do Federal Reserve de inundar o mercado com uma torrente de US$ 600 bilhões assinala um ponto de inflexão. Os EUA cansaram de esperar e resolveram mudar unilateralmente o cenário mundial. A China retrucou num tom incomum, anunciando que erguerá uma “muralha de fogo” contra o ingresso de capitais especulativos. A guerra cambial assume a configuração de um confronto político e ameaça converter o G20 em praça de combates. Em meio aos disparos, o governo brasileiro transforma a justificada indignação com a iniciativa americana em pretexto para circundar o debate sobre a conexão entre os gastos públicos, as taxas de juros e a apreciação do real.
Uma falência do G20 não serviria a nenhum dos atores de uma ordem econômica global que precisa da “mão visível” da política para conservar alguma estabilidade. Mas o espetáculo da soberania, por sua própria dinâmica, pode desandar em guerra cambial e comercial, arrastando o mundo pela ladeira da depressão. Hoje, só o FMI, que faz reuniões fechadas, propícias à separação entre a soberania e seu exercício espetacular, tem as condições políticas para exercer a mediação entre as potências do G20. Depois dos retumbantes fracassos dos anos 90, o FMI pode encontrar um novo papel útil nessa função de intermediação. Se isso acontecer, o Brasil de Dilma Rousseff reconhecerá na antiga instituição de Bretton Woods um parceiro insubstituível. Ironias da história.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Novas potências redefinem a geografia econômica mundial

O sistema internacional do século XXI tem se apresentado cada vez mais descentralizado e dotado de uma multiplicidade de pólos de decisão. Esse novo equilíbrio, sobre o plano histórico representa o fim de um longo ciclo de preponderância ocidental. O policentrismo que vem se afirmando nos últimos anos implica não somente numa distribuição internacional mais eqüitativa das riquezas, mas também tem sinalizado para importantes modificações no âmbito geopolítico.
Assim, instituições internacionais criadas após a Segunda Guerra Mundial como, por exemplo, as Nações Unidas (ONU), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e o G-7, deverão necessariamente evoluir para refletir essas novas realidades. Dada a multiplicidade e a amplitude dos desafios mundiais, essas mutações exigem que se repense a questão da cooperação internacional.
Os prognósticos econômicos indicam que em 2020, o Produto Interno Bruto (PIB) de sete países emergentes, grupo formado por China, Índia, Brasil, Rússia, México, Indonésia e Turquia (E-7) será maior que o do G-7. Até 2030, cinco das 10 maiores economias serão países tidos hoje como emergentes.
Essas informações constam de recente relatório da prestigiosa organização PricewaterhouseCoopers (PwC) que ainda afirma que o E-7 e o G-7 terão pesos equivalentes um pouco antes de 2020. Há dez anos, o PIB dos sete países mais ricos do mundo era o dobro dos países que hoje são considerados emergentes. Depois da aparente arrefecimento da crise que atingiu especialmente o mundo desenvolvido em 2008/2009, neste ano a redução da distância do PIB entre o E-7 e o G-7 deverá ser de 35%.
Segundo ainda a PwC, daqui vinte anos os maiores PIBs do mundo serão, em ordem decrescente, China, Estados Unidos, Índia, Japão, Brasil, Rússia, Alemanha, México, França e Reino Unido.As mudanças que estão ocorrendo rapidamente no cenário econômico mundial, como não podiam deixar de ser têm ampla repercussões geopolíticas. Por exemplo, em 2009, o G-7 foi “engolido” pelo G-20 que cada vez mais se comporta como o principal fórum para as decisões da economia global.
Nas relações de poder no mundo atual podem ser identificados três planos. No de âmbito militar, desde a desintegração da União Soviética (1991), os Estados Unidos se cristalizaram como o maior poder mundial. Nenhum país do mundo tem a capacidade dos norte-americanos, em atuar em qualquer ponto do planeta onde seus interesses econômicos ou estratégicos estiverem sendo ameaçados. E isto, aparentemente, não deve mudar nas próximas décadas.
Num segundo plano, o das relações econômicas, o mundo é realmente cada vez mais policêntrico. Neste plano os Estados Unidos não conseguem seus objetivos sem barganhar com outros importantes protagonistas como a Europa, China e outros. Mas, isso não sinaliza uma rápida decadência norte-americana.
O país ainda se mantém na vanguarda dos avanços e inovações em áreas estratégicas como a ciência e tecnologia e seu peso na economia global ainda é enorme. Com apenas 5% da população do planeta, os Estados Unidos geraram ao longo de mais de um século entre 20 e 30% de toda produção mundial, mesmo em períodos marcados por guerras e depressões econômicas.
Por fim, no plano das relações internacionais, ninguém está efetivamente na liderança, já que a única forma de lidar com problemas como o terrorismo, tráfico de drogas, pandemias proliferação nuclear ou mudanças climáticas é por meio da cooperação entre governos. É nesse âmbito que residem as maiores ameaças do mundo atual. Para fazer frente a esses desafios nenhum país tem a capacidade de resolve-los de forma unilateral, mesmo com grande preponderância militar.