segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Do multiculturalismo à deportação

“O crápula da República”, estampou na capa a revista francesa Marianne de 7 de agosto, sobre uma foto do presidente Nicolas Sarkozy. Dias antes, em Grenoble, Sarkozy pronunciara um discurso odiento: “A nacionalidade francesa deve poder ser retirada de todas as pessoas de origem estrangeira que deliberadamente atentaram contra a vida de um policial, de um militar ou de qualquer outro agente da autoridade pública. (...) Eu sustento ainda que a aquisição da nacionalidade francesa por um menor delinquente no momento da maioridade não seja mais automática.”
A pretexto de combater a violência urbana, Sarkozy pressiona pela introdução de uma fronteira de sangue entre os cidadãos. Os “franceses de casta” acusados de delitos contra as autoridades conservariam seus direitos nacionais. Os franceses “de origem estrangeira” – isto é, para iluminar o que está implícito, os cidadãos de outra “etnia” – perderiam tais direitos, sujeitando-se à deportação. A mudança não pressupõe que ninguém seja acusado de um ato de delinquência. Antes disso, todas as pessoas de origem estrangeira teriam sido rebaixadas a cidadãos de segunda classe, pois possuiriam apenas uma nacionalidade precária, condicional.
Grenoble representou a conclusão coerente de uma trajetória, não um raio no céu limpo. O ponto de partida foi o multiculturalismo. O ponto de chegada é a deportação. Se há um paradoxo nisso, ele é apenas aparente.
Há três anos, Sarkozy criou um Ministério da Imigração e da Identidade Nacional. No nome, há uma tese: a imigração constituiria ameaça à identidade nacional, definida segundo critérios étnicos. A tese condensa uma reação contra a história republicana francesa. Desde a Constituição de 1793, que consagrou o princípio do direito da terra, a cidadania é definida como um contrato entre iguais: os habitantes da França. No lugar disso, o “crápula da República” recupera o mito monarquista da “França de mil anos”: o fruto do encontro entre os francos e a religião católica.
A Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen tenta restaurar o mito anacrônico por meio da celebração romântica do passado, que assoma na imagem santificada de Joana D’Arc. Sarkozy almeja um fim idêntico, mas pelo recurso ao multiculturalismo contemporâneo. Em 2008, o “crápula da República” encomendou um plano de ação em favor da “diversidade” e da “igualdade” entre as etnias. Tudo começaria com a reformulação do censo, para a produção de estatísticas étnicas da população. Na França, em nome do contrato republicano da igualdade, os censos não indagam sobre origem ou religião. Mas o projeto multiculturalista não pode viver sem isso, pois precisa colar rótulos étnicos em cada pessoa. Evidentemente, tais rótulos também são indispensáveis para identificar cidadãos de segunda classe e promover a deportação dos “indesejáveis”.
Tanto quanto no Brasil, o governo francês ganhou aplausos entusiasmados da rede de ONGs sustentadas pela Fundação Ford para a política de classificação racial dos cidadãos. Contudo, uma onda de resistência partiu de defensores de direitos humanos e de movimentos antirracistas. A escritora Caroline Fourest observou que “as estatísticas étnicas reforçarão o racismo”. Samuel Thomas, da organização SOS Racismo, conectou o discurso multiculturalista aos “nostálgicos da época colonial”. A feminista Fadela Amara qualificou as “estatísticas étnicas, a discriminação positiva, as cotas” como “uma caricatura”. E foi ao ponto: “Nossa república não deve se tornar um mosaico de comunidades. Nenhuma pessoa deve, uma vez mais, portar a estrela amarela”.
O “mosaico de comunidades” é o ideal do multiculturalismo. Na França, o recurso à “estrela amarela” propiciaria o delineamento de uma “nação gaulesa” circundada por uma miríade de “etnias minoritárias”. No Brasil, propicia a fabricação de um Estado binacional composto por uma “nação branca” (ou “eurodescedente”) e uma “nação negra” (ou “afrodescendente”). Lá, as minorias ganham a pecha de “estrangeiros”; aqui, todos seriam “estrangeiros” numa terra de exílio. Há mais uma diferença. A esquerda francesa, que acredita na democracia e enxerga-se como herdeira da Constituição de 1793, rejeita a rotulagem étnica. A esquerda brasileira, com honrosas exceções, cultua tiranias e despreza o princípio da igualdade política. Por isso, alinha-se com os arautos da política de raças.
Todos devem portar a estrela amarela – eis o programa do multiculturalismo. Também é a plataforma de Charles Wilson, líder de um partido neonazista americano que almeja enviar os negros e latinos “de volta a seus países”. Ele emprega uma linguagem paralela à dos nossos racialistas e reivindica algo que define como seus direitos raciais: “Eu tenho orgulho de ser branco. Estou falando de minha herança, e consideram isso um crime de ódio. Podemos dizer poder negro, poder latino, mas se você disser poder branco cai todo mundo em cima.”
Nos idos de 2006, o chefe da Frente Nacional reclamou do “excesso de negros” na seleção francesa de futebol. O zagueiro Thuram, nascido em Guadalupe, replicou oferecendo-lhe uma aula de história: “Não sou negro, sou francês. Le Pen deveria saber que assim como existem negros franceses, existem loiros e morenos. Viva a França! Mas não a França que Le Pen quer, e sim a França verdadeira.” É a “França verdadeira” que está em perigo quando o “crápula da República” tenta dividi-la segundo linhas oficiais de cor. Um “Brasil verdadeiro”, que vive na consciência das pessoas comuns de todas as cores, também está ameaçado pela maré montante das políticas raciais implantadas sob a cínica alegação do combate ao racismo.
“Como os militantes antirracistas poderiam apoiar o estabelecimento de categorias etno-raciais?”, pergunta, indignado, Samuel Thomas. Eis uma boa questão para os racialistas brasileiros que se travestem como militantes antirracistas.

domingo, 22 de agosto de 2010

Uma nova regionalização para o Nordeste

Na tradição da Geografia regional do Brasil, o Nordeste possui quatro unidades subregionais: Zona da Mata, Agreste, Sertão e Meio-Norte (Transição para a Amazônia). Os nomes indicam que o critério utilizado na operação de regionalização sofreu forte influência da análise das características naturais, em especial as climato-botânicas, e das atividades econômicas históricas. Entretanto, nas últimas décadas, o Nordeste vem sofrendo os impactos do processo de globalização e conhecendo profundas transformações econômicas. Tais mudanças solicitam uma nova divisão subregional, capaz de captar o dinamismo recente e o caráter mais complexo e diferenciado de todo o espaço regional.
Diante do anacronismo da divisão tradicional, com base em dados e estudos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), órgãos do governo federal elaboraram uma nova divisão subregional. A proposta não deixou de levar em conta os critérios climato-botânicos, expressos pela permanência parcial dos nomes Mata, Agreste e Sertão. Mas ela acrescentou outros, como a subregião do Cerrado, e articulou também o “fator” hidrográfico, ressaltando o papel dos rios São Francisco e Parnaíba, que funcionam como elementos de identificação de espaços subregionais. O resultado são nove regiões geoeconômicas: Litoral-Mata, Pré-Amazônia, Parnaíba, Sertão Setentrional, Sertão Meridional, São Francisco, Agreste Oriental, Agreste Meridional e Cerrado.
O Litoral-Mata abrange áreas de todos os estados, numa faixa que engloba a “antiga” Zona da Mata mais o litoral setentrional do Nordeste. Ela compreende quase metade da população regional, é a mais importante das subregiões e gera quase dois terços do PIB nordestino. Nesta área localizam-se todas as capitais nordestinas, com exceção de Teresina, e também as maiores concentrações urbano-industriais – inclusive Salvador, Recife e Fortaleza, as três maiores regiões metropolitanas. O turismo é a atividade responsável pela atração de um número cada vez maior de pessoas e figura, ao lado de expressivos investimentos externos, como fonte do dinamismo econômico. A porção baiana do Litoral-Mata, onde estão o Pólo Petroquímico de Camaçari e o Distrito Industrial de Aratu, abriga quase 13% da população e gera mais de 20% do PIB regional.
A Pré-Amazônia se estende pela porção oeste do Maranhão e corresponde em grande parte ao “antigo” Meio-Norte. Ela abriga cerca de 6% da população e produz pouco mais de 3% do PIB regional. A baixa densidade econômica da área poderá ser dinamizada através da agricultura diversificada de grãos, fruticultura tropical (caju) e da recuperação e manutenção de pastagens. Há também possibilidades relacionadas à implantação de indústria florestal moderna e sustentável.
A subregião Parnaíba abrange áreas do Maranhão e o Piauí. É uma das menores sub-regiões, concentra 4,6% dos nordestinos e seu PIB equivale a pouco mais de 3% do total. O principal núcleo da área é Teresina, principal aglomeração urbano-industrial do interior nordestino.
O Sertão Setentrional é a mais extensa das subregiões, estendendo-se por áreas de todos os estados, à exceção do Maranhão, Bahia e Sergipe. É a segunda subregião mais populosa e gera o segundo maior PIB regional (8,3%). Existe na área uma clara distinção entre os “novos” e “velhos” Sertões. Os primeiros estão representados, por exemplo, pelas cidades cearenses de Sobral e Crato, onde se localizam modernas indústrias de calçados. Os segundos, pela agricultura e pecuária extensiva, atividades tradicionais do semi-árido.
O Sertão Meridional compreende apenas áreas da Bahia e Sergipe. A subregião concentra pouco menos de 6% da população e seu PIB não chega a 3% do total do Nordeste.
A subregião do São Francisco abrange áreas da Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas. Abriga 4% da população e seu PIB equivale a 3,6% do total regional. Economicamente, é uma das subregiões com maior crescimento recente. A fruticultura irrigada de alto nível tecnológico tem nas cidades “gêmeas” de Juazeiro (BA) e, principalmente, Petrolina (PE) seus núcleos mais importantes. Pernambuco se tornou o segundo maior produtor de vinho do país.
O Agreste Oriental é a menor das subregiões, projetando-se por áreas do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. É a terceira mais populosa e responsável por mais de 5% do PIB nordestino. Campina Grande (PB) e Caruaru (PE), as “capitais do Agreste”, com suas indústrias têxteis e de calçados e centros avançados de pesquisas, destacam-se como os mais importantes núcleos urbanos.
Já o Agreste Meridional se estende por parte dos estados de Sergipe e Bahia. Na subregião se encontra quase 8% da população e seu PIB equivale a 5,7% do total regional. Nesta área, destacam-se as cidades baianas de Feira de Santana e Vitória da Conquista.
A subregião do Cerrado abrange áreas da Bahia, Maranhão e Piauí. É segunda maior em extensão, a menos populosa, e a que possui menor participação no PIB (2,8%). Paradoxalmente, apresenta os maiores ritmos de crescimento nos últimos anos. A expansão da cultura mecanizada de grãos, especialmente soja e milho, acompanhada pela criação de bovinos, decorre da ação de empresários rurais transferidos do Sul e do Sudeste. As cidades de Barreiras e Luiz Eduardo Magalhães, na Bahia, Elizeu Martins, no Piauí, e Balsas, no Maranhão, são os pólos dessa área.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Os caçadores e o elefante

A 20 de julho, no meio da tarde, em cerimônia no Palácio do Itamaraty, Lula sancionou a primeira lei racial da história do Brasil. São 65 artigos, esparramados em 14 páginas, escritos com o propósito de anular o artigo 5º da Constituição Federal, que começa com as seguintes palavras: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. O conjunto leva o título de Estatuto da Igualdade Racial, uma construção incongruente na qual se associa o princípio da igualdade ao mito da raça, que veicula a ideia de uma desigualdade essencial e, portanto, insuperável.
O texto anticonstitucional, aprovado a 16 de junho por um acordo no Senado, é uma versão esvaziada do projeto original. No acordo parlamentar, suprimiram-se as disposições que instituíam cotas raciais nas universidades, no serviço público, no mercado de trabalho e nas produções audiovisuais. Pateticamente, em todos os lugares exceto no título, o termo “raça” foi substituído pela palavra “etnia”, empregada como sinônimo. Eliminou-se ainda a cláusula que asseguraria participação nos orçamentos públicos para os “conselhos de promoção da igualdade étnica”, órgãos a serem constituídos paritariamente nas administrações federal, estaduais e municipais por representantes dos governos e de ONGs do movimento negro.
Mas o que restou é a declaração de princípios do racialismo. A lei define uma coletividade racial estatal: a “população negra”, isto é, “o conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas”. Dessa definição decorre uma descrição racial do Brasil, que se dividiria nos grupos polares “branco” e “negro”, e a supressão oficial das múltiplas identidades intermediárias expressas censitariamente na categoria “pardos”. Implicitamente, fica cassado o direito de autodeclaração de cor/raça, pois o poder público arroga-se a prerrogativa de ignorar a vontade do declarante, colando-lhe um rótulo racial compulsório. O texto funciona como plataforma para a edificação de um Estado racial, uma meta apontada no artigo 4º, que prevê a adoção de políticas raciais de ação afirmativa e a “modificação das estruturas institucionais do Estado” para a “superação das desigualdades étnicas”.
A fantasia que sustenta a nova lei consiste na visão do Brasil como uma confederação de nações-raças. Nessa confederação, o princípio da igualdade deixaria de ser aplicado aos indivíduos, convertendo-se numa regra de coexistência entre coletividades raciais. Os cidadãos perdem o estatuto de sujeitos de direitos, transferindo-o para as coletividades raciais. Se o Poder Judiciário curvar-se ao esbulho constitucional, estudantes ou trabalhadores da cor “errada” não poderão apelar contra o tratamento desigual no acesso à universidade ou a empregos arguindo o princípio da igualdade perante a lei, pois terão sido rebaixados à condição de componentes de um grupo racial.
Nos termos do Estatuto Racial, que é um estatuto de desigualdade, a “população negra” emerge como uma nação separada dentro do Brasil. O Capítulo I fabrica direitos específicos para essa nação-raça no campo da saúde pública. O Capítulo II, nos campos da educação, da cultura, do esporte e do lazer. O Capítulo IV, nas esferas do acesso à terra e à moradia. O Capítulo V, na esfera do mercado de trabalho. O Capítulo VI, no tereno dos meios de comunicação. O pensamento racial imagina a África como pátria da “raça negra”. A nova lei enxerga a “população negra” como uma nação diaspórica: um pedaço da África no exílio das Américas. O Capítulo III determina uma proteção estatal particular para as “religiões de matriz africana”.
A supressão do financiamento público compulsório para os “conselhos de promoção da igualdade étnica” e dos incontáveis programas de cotas raciais na lei aprovada pelo Senado refletiu, limitada e parcialmente, o movimento de opinião pública contra a racialização do Estado brasileiro. Uma vertente das ONGs racialistas interpretou o resultado como uma derrota absoluta – e pediu que o presidente não sancionasse o texto esvaziado. Surgiram até vozes solicitando uma consulta plebiscitária sobre o tema racial, algo que infelizmente não se fará.
O ministério racial, que atende pela sigla enganosa de Seppir, entregou-se à missão de alinhar sua base na defesa do “Estatuto possível”. Para tanto, reuniu pronunciamentos de arautos do racialismo como o antropólogo Kabengele Munanga, uma figura que chegou a classificar os mulatos como “seres naturalmente ambivalentes”, cuja libertação dependeria de uma opção política pelo pertencimento ao grupo dos “brancos” ou ao dos “negros”. Na sua manifestação, o antropólogo narrou uma fábula sobre os caçadores Mbuti, da África Central, denominados pigmeus na época da expansão imperial europeia.
Os caçadores de Munanga almejam abater um elefante, mas voltam para a aldeia com apenas três antílopes, “cuja carne cobriria necessidades de poucos dias”. As mulheres e crianças, frustradas, contentam-se com tão pouco e não culpam os caçadores, mas Mulimo, Deus da caça, divindade desse povo monoteísta. Os caçadores voltarão à savana e, um dia, trarão o elefante.
A fábula é apropriada, tanto pelo seu sentido contextual como pelas metáforas que mobiliza. Ela remete a um povo tradicional, fechado nas suas referências culturais, que serviria como inspiração para a imaginária nação-raça diaspórica dos “afrobrasileiros”. Os caçadores simbolizam as lideranças racialistas, que já anunciam a intenção de usar o Estatuto Racial para instituir, por meio de normas infralegais, os programas de cotas rejeitados no Senado. O elefante representa o Estado racial completo, com fartas verbas públicas para sustentar uma burocracia constituída pelos próprios racialistas e dedicada à distribuição de privilégios.
Munanga não falou das guerras étnicas na África Central. É que o assunto perturba Mulimo e prejudica a caçada.