terça-feira, 25 de novembro de 2008

Artigo brilhante de Demétrio Magnoli.

A cidade no alto da colina

Dez anos depois da viagem fundadora dos peregrinos do Mayflower, de 1620, John Winthrop liderou um grupo de puritanos que estabeleceram uma colônia na Nova Inglaterra. A bordo do navio Arbella, pouco antes do desembarque, ele pronunciou um sermão que se tornaria célebre pela passagem: “nós devemos ser como uma cidade brilhante no alto da colina”. Os puritanos ingleses julgavam que sua pátria perecera moralmente por ter rompido o pacto com Deus e prometiam começar tudo de novo na América do Norte, oferecendo aos cristãos da Europa um exemplo de pureza. Não demorou para que a metáfora da cidade-farol fosse preenchida com significados ausentes do sermão original: democracia, liberdade, oportunidade.
Todas as nações são excepcionais, no sentido de que cada uma é o fruto de uma narrativa fundadora singular. Mas nenhuma outra proclama incessantemente essa condição. Três décadas depois da ancoragem do Arbella, com o coração devastado, começaram a chegar na “cidade brilhante” os radicais de Oliver Cromwell. Aqueles revolucionários cristãos e republicanos devotaram suas vidas à idéia de acender o fogo da liberdade por toda a Europa, destruindo as opressoras monarquias católicas e cobrindo o mundo com a tenda da Commonwealth. Contudo, os Atos de Navegação e a conciliação entre o Lorde Protetor e os poderes europeus encerraram a revolução. Os profetas remanescentes transferiram-se para o outro lado do oceano, onde juntaram os gravetos de uma nova fogueira. Cem anos mais tarde, utilizando a linguagem do século das Luzes, os pais fundadores inscreveram a idéia da reforma do mundo na Declaração de Independência.
No seu discurso de despedida, Ronald Reagan mencionou a cidade encarapitada na colina e a jornada de Winthrop “à procura de um lar que seria livre”. Um a um, os presidentes dos EUA, democratas ou republicanos, retomaram a nota do excepcionalismo e reafirmaram o compromisso com a reforma do mundo. Os fundamentos filosóficos de política externa dos EUA estão mais apartados daqueles das potências européias que a Lua da Terra. Enquanto os europeus traduziram o interesse nacional nos termos da Realpolitik e entregaram-se quase sempre ao cálculo geopolítico, os americanos enveloparam as suas políticas, mesmo as mais estreitamente egoístas, em grandiosas proclamações de valores universais. É um atestado da audácia da ignorância ou de um primitivo anti-americanismo descartar no lixo destinado à retórica vazia tudo que disseram os líderes americanos durante dois séculos.
George W. Bush usou seu segundo discurso inaugural, pronunciado no ponto mais baixo da aventura iraquiana, para enviar uma mensagem a “todos os que vivem sob tirania e desespero”. Ele disse: “quando vocês se erguerem pela liberdade, nos ergueremos com vocês”. Era o tempo de Abu Ghraib e dos memorandos de legalização da tortura, denúncias incontornáveis da farsa contida na idéia da reconstrução democrática do mundo por meio da força militar da Nova Roma. Mas nem sempre o conceito de missão da política externa americana foi expresso como a predestinação de implantar um protetorado mundial.
Woodrow Wilson, inspirado pela idéia kantiana da “liga da paz”, fez da proposta da Liga das Nações a síntese de sua plataforma de uma paz “sem vencidos ou vencedores”, numa Conferência de Paris de 1919 contaminada pelo desejo de revanche. Em 1928, o secretário de Estado Frank Kellogg só aceitou firmar um pacto de segurança esboçado pelo francês Aristide Briand depois de convertê-lo num utópico tratado geral de proscrição da guerra. No fim da Segunda Guerra Mundial, Franklin Roosevelt, erguendo-se sobre os ombros de Wilson, redesenhou a liga fracassada como as Nações Unidas. A ex-primeira-dama Eleanor Roosevelt presidiu o comitê de redação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o tratado de inauguração da era dos direitos humanos que completa 60 anos em dezembro. Tais iniciativas não exprimem apenas virtudes e cada uma delas inscreve-se também numa moldura de interesses geopolíticos, mas todas são testemunhos de um desejo de liderar a partir do “poder persistente de nossos ideais”.
Projeto para um Novo Século Americano é o nome de um instituto político neoconservador criado em 1997 por Bill Kristol e Robert Kagan, que fechou suas portas há dois anos, num eloqüente sinal simbólico da falência do governo Bush. No seu discurso de Chicago, Obama dirigiu-se a “todos que me escutam esta noite, além de nossas praias” para dizer que “nossas histórias são singulares, mas nosso destino é compartilhado – e uma nova aurora de liderança americana está à mão”. O novo presidente, como seus antecessores, imagina-se o representante da cidade que brilha no alto da colina. Num mundo marcado pela ascensão chinesa, pela restauração de uma ditadura na Grande Rússia e pela deturpação jihadista do Islã, esta pode ser uma boa notícia. Com a condição de que a Casa Branca de Obama, em direção oposta à de Bush, evidence o “respeito decente pelas opiniões da humanidade” apregoado na Declaração de Independência.

Demétrio Magnoli

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