terça-feira, 4 de novembro de 2008

Um plebiscito sobre a natureza da nação.

Os republicanos entraram na corrida presidencial no pior dos cenários, com um presidente ostentando recordes negativos de aprovação, duas guerras mal paradas e o espectro de uma recessão cujas dimensões só mais tarde se tornaram patentes. A derrota era o resultado normal – e ninguém se espantaria com uma derrota aplastante. McCain tinha duas estradas para tentar um improvável “assalto ao céu”.
A primeira: convocar o legítimo McCain e conduzir uma campanha de alto nível, afrontando a direita republicana e apelando aos independentes que formam o centro político dos EUA. A segunda: renunciar à sua história e identidade, unificando os republicanos em torno de um discurso de fronteira, articulado como uma guerra cultural. A seleção de Sarah Palin para a vice-presidência assinalou a escolha da segunda estrada e o ocaso do McCain original.
Torta de maçã, música country, criacionismo, Deus, armas. Sob o influxo de Palin, a “América profunda”, das cidadezinhas rodeadas de plantações, que ela batizou como a “América verdadeira”, ergueu-se contra o senador “esnobe” e cosmopolita de Chicago. Nós e eles: a guerra de Palin traçou um risco no chão para dividir os americanos de verdade dos “estrangeiros” de Obama. Aos poucos, McCain converteu-se apenas no vulto de um guerreiro heróico que enterrou seus anos de juventude nas selvas do Vietnã.
Obama não é como nós. Esta linha de ataque significa, antes de tudo, que ele tem a cor da pele errada. A sentença não precisa ser pronunciada: é um subtexto e a fonte última de uma curiosa confiança na surpresa que uma parcela suficiente dos eleitores supostamente prepara para a hora da verdade.
“Barack Hussein Obama”. Um xerife uniformizado introduziu McCain e Palin num comício na Flórida pronunciando o nome inteiro do inimigo – e acentuando o primeiro sobrenome. O homem é um muçulmano, diz um boato envolvente. “Não, madame, ele é de uma família cristã decente”, retrucou o próprio McCain diante da inconveniente pergunta direta de uma eleitora. Essa linha parece ter sido a gota que transbordou o copo de mágoas de de Colin Powell, o velho general republicano e amigo de décadas do “legítimo McCain”. “A resposta correta é que Obama sempre foi um cristão. Mas a resposta realmente correta é: E se fosse? Um garoto americano muçulmano não pode sonhar em ser presidente dos EUA?”, indagou devastadoramente ao declarar seu voto no democrata.
“Obama anda por aí se acumpliciando com terroristas”. A linha final de ataque saiu da boca de Palin, enquanto a propaganda republicana na tevê sugeria a existência de um segredo compartilhado entre Obama e o velho Bill Ayers, um estudante radical nos tempos da Guerra do Vietnã que promoveu esparsos atos de violência quando Obama chupava pirulito e vestia calças curtas. O fantasma de Ayers surgiu na campanha na hora em que se apagava o de Jeremiah Wright, o ex-pastor cheio de fel, e pouco antes da aparição de Rashid Khalidi. O que há num nome? Khalidi é um acadêmico renomado, tão americano quanto McCain, mas as origens palestinas de sua família e o fato de servir como conselheiro dos palestinos nas negociações de paz com Israel poderiam sugerir à “América verdadeira” que se trata de mais um camarada terrorista de seu amigo Hussein Obama.
“A cidade brilhante no topo da colina”, isto é, os EUA, na metáfora célebre emanada de um sermão de 1630 do colono puritano John Winthrop, continua a figurar como uma esfinge a ser decifrada. Nenhuma campanha presidencial anterior havia se tornado tão nitidamente um exercício de tradução da natureza daquela cidade. Palin e um triste McCain oferecem a visão de uma fortaleza murada, assediada por uma horda de bárbaros que seguem a bandeira devassa de Obama. Será trágico se, contra todos os prognósticos, uma maioria do eleitorado alinhar-se atrás de uma tal representação da cidade encarapitada na colina.


Demétrio Magnoli

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